Dançantes e Abatazeiros
Entrevista com Zé António
Abatazeiro da Casa
Maio 2014
Zé António (ZA): Meu nome é Zé António […], nasci em 1984, na maternidade Benedito Bejo, local que eu estudei foi na Unidade do Estado do Pará, conclui até uma certa parte lá, de lá eu saí e fui para outra escola. Entrei e cheguei aqui até ao terreiro em 2004, bem no princípio do terreiro, participei logo dos primeiros toques que houve na casa. Quando eu passava na rua, eu olhava aquela coisa, esse pessoal tocando... Então eu olhava, passava, achei aquela coisa mesmo interessante, na época eu passava uma situação meio ruim, entendeu? Não tinha muito equilíbrio, bebendo demais, me metia em muitas confusões. Aonde eu procurei a religião, aonde eu me encontrei. O meu pai de santo, Wender, ele me deu muita oportunidade, me ensinou muita coisa, me deu um conhecimento de vida melhor. E hoje o que eu sou, agradeço muito a ele, o pouco que eu sei, eu agradeço muito a ele, a minha espiritualidade hoje, pra mim, significa muito: onde me encontrei, aonde eu passei muita coisa, muita coisa mesmo e, enfim, pra mim a religião é tudo.
O primeiro instrumento que eu peguei dentro do tambor de mina foi a cabaça, quem me deu foi Seu Cravinho. Aí a gente bebemos, fizemos aquela amizade e ele disse “eu quero você lá em casa, tem uma festa aí eu quero o senhor lá”. Foi justamente nesse dia, eu vim, comecei a frequentar a casa, pra mim tudo aquilo ali era estranho, eu não entendia de nada e aí foi que teve o toque. E ele falou “vai ao toque”, e eu falei “eu não sei tocar e não vou aprender agora”! E aí ele me deu uma cabaça e um tambor. E aí foi a primeira vez que eu toquei no cabaço. Fiquei vindo aqui todo o tempo, meu pai de santo me ajudou muito, muito, muito, em termos de comida, escola, conversas, até porque eu tinha uma vida mesmo ruim, crítica. Eu não tinha o que comer, eu dormia na casa de outro, entendeu? Então o terreiro em si me abraçou, me deu carinho, me deu amor, me deu comida, me deu tecto, o terreiro em si, a religião em si me abraçou. Então eu comecei a vir, frequentando a casa e tal, não participava de obrigação porque na época que eu entrei eu não tinha nenhum remédio, não tinha nada concluído para nada, aí eu fui, comecei a participar, vir, tocar e aquela coisa toda, aí Leandro me ensinou a tocar tambor. A gente sentava no abatá e ele falava “é assim, ou é errado rapaz, é aquela coisa ali” João Leal (JL): É difícil? ZA: Um pouco. Quando a gente não tem noção de nada, se torna um pouco difícil porque você não sabe o ritmo, então fica aquela coisa assim meio… Mas como eu já tocava pagode, tinha noção assim de algum toque de um instrumento, então não se tornou tão difícil assim, fui escutando, vinha cedo pra cá, sentava às vezes aqui em baixo, o pessoal pegava o tambor, a gente ficava ali, subia pra uma tábua e “oh é desse jeito!”. Era assim: tocava corrido, dobrado... Aí foi direitinho... JL: Ia ensaiando... ZA: É, já ia ensaiando. Quando eu comecei, é como eu tou lhe dizendo, não tinha noção de nada, então comecei a me dedicar. Eu vim, às vezes tocava no tambor... Mas no ínicio não participava de nada. JL: O abatazeiro tem uma espécie de iniciação? ZA: Tem, tem. Todo o abatazeiro pra ele poder participar de algum fundamento na casa, ele tem que ter iniciação, tipo dançante, mas só que ele não incorpora. Tem um período em que a pessoa faz a iniciação, que se recolhe e dá obrigação pra seu Orixá, pra o seu Vodum entendeu? Eu tenho Oxum, junto com Iemanjá. Porque dei obrigação na casa. [Mas antes] eu passei três anos na casa, sem obrigação, sem nada... JL: Só tocando? ZA: Só tocando, também o meu papel era só tocar, eu não participava de fundamento nenhum, quando tinha algo, fundamento ou alguma coisa, algum serviço, não participava porque eu não podia, a gente não podia olhar... JL: Como é a iniciação? ZA: A gente passa quatro dias, cinco dias recolhido, aqui, dentro do terreiro, aprendendo as coisas. Eu não sabia o que era cântico, eu ficava a ver, me perguntando assim: “Meu Deus como é que eu vou aprender essas coisas, é tudo difícil”. Tudo, cântico, falar em iorubá. “Como é que eu ia saber”, ficava-me perguntando. Mas dei de mundo, com minha senhora, minha mãe e Oxum, [pedi] que abrisse minha mente, que me ensinasse. Sentava com meu pai de santo, perguntava, chegava e meu pai falava: “a toda hora me perguntando”. Mas quando a gente quer saber, tem que se dedicar, tem que perguntar mesmo. E observava muito, até hoje sou muito observador. Então concluí minha iniciação e o primeiro ritual que eu participei foi com Orixá e não tinha noção também como seria entrar, olhar, como se pega isso, o que se faz, o que se fala, como se faz uma situação, aí eu fui adquirindo conhecimento. Hoje eu tenho conhecimento. Meu pai de santo, ele me abraçou: “olha Zé António é assim, Zé António é desse jeito e você faz isto”. Hoje eu participo, hoje eu sou um dos notórios que estou aqui em frente, que participa de obrigação diária com ele. Quando tem obrigação, fundamento, alguma coisa, ele me liga. Hoje eu entendo o porquê, eu entendo um pouco. Então a religião significa muito pra mim, é uma coisa com que eu me identifiquei, eu gosto, é de coração mesmo. Só não vou quando não posso, se tou trabalhando ou tenho de resolver alguma coisa. Mas sempre venho, nem que um sábado, sentar e ficar aqui todo o tempo, sempre perguntando as coisas pra meu pai de santo, porque em terreiro a gente não se vira e diz “ah eu sei”! Porque terreiro é vivência, todo o dia se aprende uma coisa, dentro do terreiro tudo é um aprendizado. Hoje você faz uma situação, uma obrigação, uma energia, amanhã ela é de outra... JL: Quem foram os primeiros abatazeiros aqui da casa? ZA: Os mais antigos da casa são seu Deónio, seu Pepito, seu Carlos César. Foram os primeiros. Eu tenho dez anos aqui na casa. Eu e Ricardo. Então durante esses dez anos aqui, pra mim, foi uma vida muito boa, então eu espero que seja muito mais e muito mais. |
«Ele é [um toque] muito fino, é uma coisa assim muito melindrosa. Aquele toque, ele traz a vida e a morte, entendeu? Por isso é que as pessoas se incorporam daquela forma, com as entidades que são doentes, que são da família de Xapanã. Aquele toque representa muita coisa, ele é muito muito fino, é um toque muito fino mesmo.»
JL: Vocês se organizam durante o toque. Vocês fazem uma hora e meia e aí param e entram outros, né?
ZA: É, é que reveza. Por exemplo, o toque começou, uma hora de relógio na casa, aí entra a primeira equipe de abatazeiros e depois entra outra equipe e aí vai ficando assim pra não cansar, sempre revezando, entendeu? JL: Qual é o toque mais difícil? O corrido? ZA: Pra mim quando comecei todos eram difíceis, hoje não. Agora mais cansativo é quando o toque é corrido, é o mais cansativo, mas aí a gente tira de letra. JL: Qual é relação entre os toques – corrido, dobrado – e a forma como está organizada a dança? ZA: [Cada] doutrina significa uma fórmula de uma entidade dançar. De roda, de frente, de lado, ou umas de um lado e outras opostas, dependendo da situação do toque e da entidade que está vindo. Tem a ver com a família da entidade. Por exemplo, quando é os turcos [as dançantes] tão em posições de frente uns dos outros, para poder fazer aquela junção, um vai para um lado, outro vai para outro, pra virar de frente, está entendendo? Aí vai se diferenciando: às vezes é toque corrido, às vezes é dobrado, entendeu? JL: Eu reparei, mas não é muito frequente, numa dança que desenha assim uma espécie de serpente. ZA: Ah! Também tem essa doutrina, quando se canta pra Dan. Porque na nossa religião o círculo do tambor de mina é a cobra, então se faz esse ritual... JL: Sobre essa passagem de cura que tem lugar pela festa do Divino… ZA: Essa passagem de cura, que Seu Cravinho todo ano faz, que tem uma [relação] com o mastro, ele invoca toda a corrente, vem várias entidades em cima dele JL: E o toque para Xapanã, ligado à bancada dos cachorros? ZA: Ele é [um toque] muito fino, é uma coisa assim muito melindrosa. Aquele toque, ele traz a vida e a morte, entendeu? Por isso é que as pessoas se incorporam daquela forma, com as entidades que são doentes, que são da família de Xapanã. Aquele toque representa muita coisa, ele é muito muito fino, é um toque muito fino mesmo. É um toque rápido assim. A entidade vem, entra na situação ali, tudo tem um horário, pra servir a comida, pra eles estar em terra, pra eles poder sair da pessoa e não deixar mazela. Porque tem isso, esse toque é tão fino, que se der alguma coisa de errado, a pessoa fica do jeito que está ali, embolado, pode chegar até a ir embora, entendeu? Então é um toque muito, muito muito fino. JL: Nunca aconteceu durante um toque, sentir que qualquer coisa dentro de você como se quisesse baixar uma entidade? ZA: Nunca senti assim de a entidade querer baixar em mim, mas a gente sente a energia em si, tem toque que a gente tá aqui, tocando o tambor, canta pra uma certa entidade, aquela coisa vem, desce, a pessoa sente um arrepio, uma coisa, mas não [é} dizer que é incorporar, a gente sente a energia dele, do Vodum, do Orixá, tipo aquela confirmação, canta uma doutrina, uma pessoa chora, se emociona. Quando canta para Xapanã, é uma coisa que mexe muito comigo, porque é assim, [uma pessoa] sente assim aquela energia, aquela tristeza, aquela coisa assim, a gente vê a doutrina, é uma coisa assim que é triste, então aquilo ali, me comove assim, me mexe. Às vezes choro mesmo, entendeu? Meu pai às vezes fala: “ah, não tem que tar chorando”, mas é a essência, a energia do Vodum ali presente, porque a gente acaba mesmo se emocionando, mas não pra incorporar. JL: E desses toques que tem aqui qual é que gosta mais? ZA: Olha, eu gosto de todos os toques, porque é assim, dizer que gosta de um desagrada o outro. Então gosto de abraçar, quando eu sento pra tocar pode ser pra qualquer entidade. Eu toco com amor, prazer, eu gosto de satisfazer as entidades com o tipo de toque. [Mas] a festa que eu gosto da casa é a festa do Vodum do meu pai de santo, em Janeiro, [a festa de] Xangô. [Também a] festa de minha mãe, Iemanjá, no Fevereiro, a festa de minha mãe Oxum, que é em Dezembro. [Estes] são os toques [por] que eu tenho assim um pouco mais de carinho, sou mais próximo, sinto assim, aquela presença. Em termos de toque para caboclo, eu gosto mais quando toca para a família da Turquia. JL: Um toque pra Vodum e pra nobre é um toque mais calmo do que o toque pra caboclo? ZA: É, porque toque pra Vodum é diferenciado, o modo de se pôr, de passar a toalha, a própria fisionomia. Caboclo quando chega já é bradando. Aí vem aquela brincadeira, aquela coisa toda, tá entendendo? Não desmerecendo os caboclos, é aquela coisa, neguinho vem, já abraça, já brinca, já pára o tambor, aquela coisa, aquela brincadeira. O nobre não, já tem aquela impunidade, já tem aquele respeito, já não é de tar falando muito. São muito observadores. JL: Eu reparei que nesses toques, quando baixa Seu Cravinho, ele vai no tambor… ZA: Ah ele sempre faz isso, essa forma que ele faz de peitar o tambor… Não é pra falar que algo tá errado no tambor, é da própria entidade mesmo, ter visão, a entidade vai e salta em cima do tambor, peita, tá entendendo? Parece que tá desmerecendo, que o rapaz tá tocando errado, mas não. JL: Vocês, abatazeiros, são muito enturmados, muito unidos... ZA: Ah todo mundo discute e briga, mas é uma irmandade. Um tá fazendo alguma coisa de errado e o outro já chama “eh rapaz tá fazendo isso errado”. A gente tem uma união, não dizer que as dançantes não têm, têm, mas assim, a forma de comunicação delas é um pouco diferente da gente porque a gente a gente já ajeita “olha Ricardo, tá errado nisso, tá tocando errado, tá fora do ritmo”. Pode ficar zangado naquele momento, mas depois já [passou]. Mas ali tem entendimento, a gente tem essa união. Até mesmo bebendo. Um está sentado na roda, outro chega, a gente se senta e faz o nosso grupo. Porque o abatazeiro quer brincar, quer rir, quer falar palavrão, aí fofoca, aponta, ri do cabelo do outro. A gente se senta assim com as entidades, brinca, senta, conversa, bebe, fuma, canta. Às vezes a gente se zanga com alguns irmãos de santo, é assim coisa de terreiro, às vezes também é a forma de se falar. Mas aqui não tem nada contra ninguém, eu gosto dos meus irmãos de santo, gosto de ver a casa cheia, gosto de ver todo o mundo reunido, brincando, dançando, se divertindo. Como esse último tambor [para Dom Luís] que teve agora, foi uma coisa assim, uma coisa que teve assim bastante harmonia. Todo o mundo cantando, aquela harmonia, aquela comunicação assim mesmo legal entre as entidades. “Olha, cantou pra água? Vamos cantar”. “Cantou pro céu? Vamos cantar”. “Cantou pra maré? Vamos cantar”. O tambor virou e canta pra ti, quem quiser cantar canta qualquer coisa e vamos, até na hora que o tambor encostou. E são coisas assim, é bom o terreiro...é bom! JL: Destas festas todas, a que junta mais gente é esta agora, do Divino? ZA: É, é agora, no Divino. As festas mais grandes da casa é do Vodum do meu pai de santo [Xangô], as de Iemanjá, o tambor de Ogum, o tambor rápido que é para Obalaé, tem a festa do Divino Espírito Santo e em Dezembro, a casa faz aniversário dia 3 de Dezembro JL: A festa do Divino junta muita gente que nem tem a ver com o terreiro, né? ZA: É porque é assim, a festa do Divino Espírito Santo é aberta ao público… Todas são abertas ao público que a gente não renega ninguém, a gente não pode dizer “não, tu não entra”, a gente chega e tem de ser bem recebido. Mas em termos de povo, mesmo, a festa do Divino Espírito Santo é a que dá mais gente, gente que às vezes nem entende o que é a religião, mas fica “ah, esse palco, cheio de frutas”. [Acho] que é pelo ensinado do catolicismo, [pelo] toque de caixa. Ou então vem na casa de pai Wender [porque] vai ter serão, seresta, pagode, música, vem mais por essas coisa. Esse ano foi na rua. A gente nunca fizemos festa do Divino Espírito Santo na rua. [Mas] é muita gente, como o senhor presenciou, o quadrado fica cheio, o barracão fica cheio de gente e aí o espaço é pequeno. É assim, a gente nunca botamos [lá fora] porque [pode] ter uns confronto, briga e tal, mas graças a Deus fizemos a seresta, foi bem tranquilo, não teve confusão, não teve briga, foi tudo bem organizado, ninguém quebrou cadeira, ninguém quebrou nada, ninguém se alterou. JL: Uma pergunta final. Os abatazeiros daqui é diferente de outras casas, porque tem abatazeiros que circulam por diferentes casas só pela cachaça e em alguns casos os abatazeiros já estão pedindo pra ser pagos, né? Mas aqui é uma situação bem diferente… ZA: Aqui a gente tem um vínculo com a casa, a gente não toca por bebida nem por dinheiro. Tem abatazeiro que toca pra beber, pra comer, por dinheiro entendeu? Isso daí eu acho uma situação meio triste, eu faço porque eu gosto, é algo em minha vida que me dedico e sento e toco o meu tambor, gosto mesmo. Começa o tambor e é aquela coisa. Aqui a gente não toca por dinheiro e bebida não, toca mesmo porque a gente ama, a gente gosta e a gente faz... |