O pai de santo e os seus encantados - As entidades
Entrevista com Seu Cravinho
Agosto 2014
Seu Cravinho (SC): A dinastia espiritual de Seu Wender é composta por Seu Xangô. Xangô Agodô, por Pinochê Sogbô e Dan. Além desses três que a gente chama de Metalocã, que corresponde à Santíssima Trindade, ele tem Dom Luís Rei de França, que é o gentil dele, tem a princesa que é a Rainha Diana, que é da família do Rei da Bandeira. Mas quase não vem, vem uma vez na vida. Fora essa princesa, tem a Menina do Maracujá que responde por ela. Aí tem, Chefe de Guma, Caboclo Jariodama, Contra Mestre, Légua Bóji Buá da Trindade. Aí vem, Caboclo do Araçagi, Caboclo do Beija-Flor, Seu Raimundo Tocoeiro. Aí eu venho por último, Cravo Rocho, não sou nem da água e nem do sal. Aí vêm os passageiros, que é Dona Mariana, Jaguarema, que aí pode ser quem for por que eles são passageiros, né? Então, eles não têm uma ligação direta com o nascimento do ori dele, mas têm indiretamente. Como eu, eu não sou do Ori dele, composto pela questão de ancestralidade dele, mas hoje aqui eu estou de frente de quase de tudo. né? Tudo que tem aqui eu estou aqui no meio, eu que organizo. Sou também farrista, mas o farrista é Seu Jariodama, que pegou o titulo de Mestre de Guma, que na verdade era pra ser Seu Légua. Essa é uma organização deles lá, eu faço o papel do farrista, não sendo o farrista...
João Leal (JL): A entidade que vem mais vezes é Seu Cravinho? SC: É, sou eu, porque assim, dentro do mundo do pecado, [eu faço] as relações públicas da casa. Eu converso de tudo, eu tenho uma vista, uma visão em cima dele, desse mundo. Porque assim, eu falo qualquer tipo de língua, de acordo com cada um que vem nessa casa, sei meu lugar enquanto encantado, sei da minha essência. Mas eu vim com esse tipo de essência também pra poder somar pela casa, porque se fosse um caboclo zangado, fechado, não abrisse boca, eu não tinha gente ao redor me acompanhando. Então, eu falo o que aquele ali fala, eu escuto o que aquele ali falou e às vezes é coisas que não é cabível a encantado, mas também eu deixo, porque eu é que estou no mundo de vocês, não é vocês no meu, então, eu tenho que respeitar vocês em primeiro lugar, tendo o meu respeito e o meu espaço. Esse cara eu amo ele, Wender. Eu amo ele, não sei viver sem ele, está entendendo? Assim, é um casal, é uma coisa que deu certo, é um casamento que deu certo, os dois se amam, a verdade é essa. JL: E as outras entidades se fazem menos presentes? SC: Na verdade é assim: as outras entidades, eles tem toda uma referência de ritualística na casa, né? Eu não venho de dentro da ritualística, eu falo, eu venho a par da ritualística. Exemplo. teve lá abertura da tribuna meio dia, não veio nenhuma entidade, que na verdade era pra descer o Dom Luís ou próprio vodum dele ou Seu Jariodama, que é representação do estado maior da casa. À noite apareceu Seu Jariodama, [mas] ele vem muito raramente. Então eu venho. Porque o que é que acontece? Com convidados de outras casas, outras pessoas e tal, e o meu povo, como é novo, não conhece todo mundo, eu faço as relações públicas, tem que conhecer, tem que dar uma força, deixar à vontade, deixar a coisa acontecer. Então eu acabo vivendo mais em cima dele do que eles próprios como regência que eles têm. Mas quando é ritual mesmo… Exemplo, dia 24 de agosto [dia de toque pra vodum] eu não apareço aqui, eu não venho que é uma coisa de vodum, aí talvez venha o gentil. Mas dia 25 de agosto [dia de toque pra Dom Luís] eu já venho no final, né? Porque aí já vem o dono da casa, Dom Luís, o gentil dele, não sei se Seu Jariodama vem após, Irmã Mariana, seja quem for. Aí se eu achar uma brecha, aí eu venho porque vai ter gente de fora dançando e coisa e tal, eu tenho que compartilhar esse momento com esse povo. Então eu converso, eu agrado, eu brinco, eu falo o que eu tenho que falar, eu converso o que tem que conversar. JL: Dom Luís vem só nessas ocasiões, nos tambores? SC: Meu pai Dom Luís ele vem mas, na verdade se ele vem duas vezes no ano é muito. Tem uma doutrina que ele canta assim mesmo, nessa doutrina ele fala tudo: “Ah! Eu sou rei, eu sou rei soberano. Ah! Eu sou rei, eu sou rei soberano, só desço na guma como rosa de todo ano, só desço na guma como rosa de todo ano. Ah! Eu sou rei, eu sou rei soberano. Ah! Eu sou rei, eu sou rei soberano, só desço na guma como rosa de todo ano, só desço na guma como rosa de todo ano” (cantando). Então, essas doutrinas falam muito da entidade, essas entidades fazem parte de uma patente de equilíbrio entre encantaria e o mundo de vocês. Então são raros, eles não podem estar assim todo tempo em guma, por que eles são pedras de encantaria. Eles são Rei Sebastião, Dom João, Dom Luís, então são entidades que eles vem em guma, mas não podem estar popularmente em todos os tambores, em todas as questões, porque eles têm como se fosse uma pedra ali, elas são firmezas pra demais encantados. Muitos encantado já se encantaram no sentido de não vim mais em guma por decepção que tiveram com pecador, chateação, energia. A natureza está se acabando, a gente não tem mais um rio, os rios são todos poluídos, os mares. Então, a gente vai acabar. Aqui olha, estamos dentro do bairro da Liberdade, né? Aqui a gente não vê um pé de árvore a não ser essas pequenas plantas aqui do lado ornamentando o espaço, cadê a energia da natureza perto de mim? Pra me dar essa energia, essa força, porque nós encantados, a gente tem essa questão toda, se a gente não tem, a gente se enfraquece. Muitos encantados vão se encantando, acabando não vindo mais em guma, deixando de ir, deixando, está entendendo? Muitos desses gentis são tudo de alto mar, né? São tudo embarcados, não está tendo esse espaço, está entendendo? O porto do Itaqui aqui que foi feito, ali era um ponto estratégico de encantaria, ali aparecia o navio de Dom João, depois que esse porto foi feito apareceu uma vez e sumiu, se encantou o navio. Isso aí, São Luís todo sabe daquela época, as pessoas olhavam, quem tinha encantado e quem não tinha, um navio cheio de tripulantes, dançando, depois ele sumia nas ondas, nas nuvens. Quando o pessoal descia, os tripulantes desciam, isso no alto mar, como se tivesse dançando, em cima do povo na pajelança ou num ritual de baião. Isso era visto no terreiros do Egito contado por vários voduns, Seu Euclides ainda viu, o finado Jorge, então tudo isso foi se encantando, encantado encantou e se encantou, vem se encantando. JL: O navio de Dom João já não vem? SC: Vem, mas a olho nu não, mas tem época. Por exemplo, 13, dia de Santa Luzia o navio de encantaria ele está na Baía de São Marcos, é o que abre um dos portais. Aqui, essa ilha é cheia de portais de encantaria, né? Aqui tem mais de trinta e poucas tribos de índios, sabia disso? Vinhais, Bequimão, tudo era aldeia de índio, Maioba, Maiobão, Maiobinha, Bequimão, tudo são portais de encantaria. Você vai em São José de Ribamar tem a pedra de Dom Carlos, né? Tem o Boi de Caúra, tem a Barra Vermelha que você olha ainda até hoje, você olha a pedra de Dom Carlos de longe, você olha um trono de pedra, quando chega perto, uma pedra ali, outra pedra ali, tudo afastado, de longe é um trono, é o lugar de Dom Carlos, pedra de encantaria, né? Tem Dona Troirinha, que no balanço que vai pra ali pra Tamatatíua você vê no meio uma troira, você vê como sendo de pedra, ele é um banco de areia no meio do mar, [uma] encantaria. Você vê a Barra Vermelha, encantaria, não vai muito longe não, [mas] isso está se acabando. JL: Os nobres continuam? SC: Alguns vinham anualmente, todos eles, tem preparação pra se receber eles, “meu filho faz uma ladainha, ascende uma vela, faz uma obrigação, bota uma champanhe”, eu levo um vinho, tem todo um ritual diferenciado. JL: O toque de tambor pra nobre é mais lento do que pra caboclo? SC: Não. Não é mais lento não. É mais assim delicado de se chamar na guma, mais do que o próprio caboclo. Depende também das correntes de cada casa, né? da espiritualidade de cada casa, como é tratado, como é feito, qual o fundamento ali que corresponde a essa casa, se pode e se não pode, está entendendo? Depende muito. Aqui Seu Dom Luís, ele tem as épocas dele, agora esse período de agosto ele reina, não sei porque não está em guma todo tempo. A última vez que eu me lembro, foi há quatro, cinco anos atrás, foi pelo ano novo, Dona Cláudia [a guia da casa] ia viajar pra Alcântara e esse Dom Luís veio aqui e disse pra ela não pegar embarcação, pra não ir, pra não viajar pra lugar nenhum. E ela com a passagem na mão mais o marido… Aí ela respeitou [e] a embarcação que ela ia encalhou, naufragou, só que não matou foi gente. Ele veio pra dar este recado. Olha só! Ele se abalou pra dar um recado, uma coisa que Seu Wender estranhou. Seu Wender pensou que ele ia morrer, ninguém tinha recebido nada, pra dar um recado de repente, “estranho, será que vai acontecer alguma coisa comigo”? Porque ele ama de paixão esse gentil, ama mais do que qualquer coisa. A não ser abaixo de Deus ele ama de paixão esse Dom Luís com esse Jariodama, isso aí é coisa que eu não cobro dele, tenho o coração aberto. JL: Qual é a diferença entre energia de vodum, nobre, caboclo? SC: A diferença quem pode falar mais é ele que sente, eu posso falar da minha, dos outros eu não posso dizer. A minha, ele sente meio energizado, mas ao mesmo tempo sugado. Porque eu sou de acordo com cada momento meu, cada situação que eu venho em guma. Aí eu tenho um tipo de essência, eu sou encantado de cura, de pajelança, povoando o Tambor de Mina. Às vezes eu me confronto com algumas questões que não me compete enquanto encantado de pajelança, mas eu tenho que dar direcionamento, então aí, eu já venho forçar ele enquanto sacerdote, o mental dele pra direcionar aquele negócio, está entendendo? Aí às vezes as pessoas dizem: “Seu Cravinho não leva nada dos outros”. Eu tenho a minha essência, minha essência é meu maracá, meu penacho e meu punhal, essa é minha essência, mas eu vim predestinado. Se eu vim predestinado e o vodum dele deixa eu povoar o ori, que é a cabeça, então é sinal que eles me aceitam muito bem. Então, alguma coisa eu estou aqui fazendo e eu tenho que fazer. Se minha missão é essa, de envolver as pessoas, trabalhar, pegar uma vela, benzer, pegar o maracá, sacudir e deixar a coisa acontecer, eu vou cumprir, pergunta se eu gosto, diga pra mim… JL: Voltando atrás… Quais são as características dos nobres comparadas com os caboclos? SC: Os nobres, eles tem um comportamento de nobreza, bebem vinhos, fumam charutos, andam calçados, não são de ‘bradar’, de dar o brado. Eles usam as toalhas transpassadas, né? Como realeza, como se fosse ali um capote ou uma peça mais de realeza. Os rosários não são encruzados como nós caboclos encruzamos, eles usam [os rosários] normais, às vezes tem alguns que usam bengala, de acordo com o patamar daquele gentil, né? Porque é uma referência de nobreza a bengala fininha. O caboclo, ele já brada, já usa o rosário, às vezes ele vem, não vem familiarizado com o ambiente, certo? Ele bebe cachaça, bebe o que for, às vezes também não bebe, a bebida ela não é um padrão pra se manter uma espiritualidade, ela é uma consequência da espiritualidade. Porque a bebida mexe com os neurônios, a mente deixa a pessoa vacilando, quanto mais ela está [vacilando], mais vai pegando a consciência dele, o subconsciente. Então por isso a gente bebe e não come, entendeu? JL: Quais os nobres que baixam aqui nos filhos de santo da casa? SC: Aqui a gente tem Rei Sebastião em cima do James, temos Dom João em cima de Dona Aldilene, que está afastada da casa, tem aqui Rei Barão de Guaré. temos aqui Dom Carlos em cima de Dona Larissa, que também está afastada, temos aqui Dom Henrique em cima de Dona Sandra. Seu Alexandre é de Dom João. Seu Júnior é de Dom Manoel. Seu Marcos é Dom João. A Tassiane é de Dona Flor de Lis, já não é um gentil, é uma princesa, filha de Dom Luís. Tem também Maria Antônia e Antonieta, que é a esposa e a filha, aí as vezes as pessoas se confundem. JL: Em relação aos nobres, muitas vezes numa casa é duma família e em outra é de outras, né? SC: Certo. Então, isso aí é particularidade de cada casa, exemplo, aqui é a casa de Dom Luís, é [ele] o gentil, então todos os gentis podem ser da família de Dom Luís e usar a marcação de Dom Luís. JL: Mesmo Rei Sebastião? SC: Mesmo o Rei Sebastião. Como se fosse hóspede… Mas esse Rei Sebastião é chefe de guma, é chefe de terentê, então não cabe nessa particularidade. Mas tem outros que podem entrar nessa particularidade, como Dom Henrique. Na casa de finado Jorge, Seu Wender era de Dom Luís e o pai de santo de Dom Luís, então Dom Luís não ia se dividir em dois pra dançar. Então, o próprio Dom Luís chamou o Dom Henrique em cima de Seu Wender, que foi o gentil que criou Seu Wender até a morte de Seu Jorge, né? [Depois] Dom Luís passou de Seu Jorge pra Seu Wender, pra reinar no trono dele, aí Seu Wender assumiu o trono de Dom Luís. Aí Dom Henrique deu uma afastada. Mas Dom Henrique, na verdade ele é Gama, ele é irmão de Dom Miguel, mas na Casa de Iemanjá ele foi adotado na cabeça desse menino aqui, de Seu Wender, como filho de Dom Luís. Ele foi adotado. As princesas [também] têm isso, dizem que no mundo dessas princesas, elas não andam certas horas, são adotadas por Iemanjá, né? As princesas Janaína, Rainha Ina… Janaína é a mesma Ina, filha do Rei Sebastião, que adotou todas essas princesas. Porque o Rei Sebastião, ele tem essa questão sempre do palácio dele ele abrir espaço, então, adota essas meninas, muitas delas vão em pajelança, vão em tambor do próprio pai. A exemplo: Diana, Fina Joia, Pedra Fina, Flor do Mar, Flor do Dia, Flor da Aurora, Flor da Barra, Flor das Nuvens, Princesa Rosa, Rosinha, Menina de Candeia, Dona Rosalina, Eurípides, Menina do Caidor, Menina do Maracujá que é Princesa Laura, Ana de Côrte, Ina, que chamam de Janaína. Essa Janaína seria a Iemanjá da Umbanda, que é essa de ‘azulzona’ , ela não é africana, ela é abrasileirada, é da Umbanda. Ela é Janaína e as pessoas pensam que é Iemanjá, mas não é, Iemanjá é africana, essa do cabelão que botam como Iemanjá, é Iemanjá brasileira. Na verdade ela é encantada, é Janaína, filha do Rei Sebastião, está até hoje no palácio dele, que fica abaixo do porto do Itaqui. JL: Essas princesas todas que falou são de que família? SC: São filhas de Bandeira, filhas de reis da Turquia, filhas de Dom João que são adotadas. A encantaria teve muito dessas coisas. Exemplo: muitos desses turcos se casaram com índios, né? Exemplo: Seu Edmundo. Quem é Edmundo? Seu Ubirajara. Ubirajara veio, entrou na mata, se casou com índia, formou uma família e foi batizado como Ubirajara, ganhou um nome indígena e se formou uma outra família, e assim foram criando filhos de um e dos outros. A encantaria teve muito isso. Filho do Rei da Turquia que foi criado por Rei da Bandeira, filho de Rei da Turquia que foi criado por Dom João, filho de Dom João que foi criado por Rei da Turquia, como se fosse aquela questão de compadre, como existe até hoje no mundo de vocês. JL: Como filhos de criação? SC: É, de criação. Então, a encantaria, ela fez esse bojo justamente, como já diz o nome. Encantaria, nada pode ser desvendado aos olhos de um pecador, porque aí desencanta, né? Como diz a doutrina de Rei Sebastião: “Rei, Rei Sebastião se desencantar lençol vai abaixo o Maranhão, se desencantar lençol vai abaixo o Maranhão” (cantando). Então assim, toda encantaria, ela tem sua história, mas ao mesmo tempo se contradiz pros curiosos, pros que querem saber de onde é e como é. Nem se tudo sabe. Aí tem uma doutrina que se canta: “segredo do mar eu não conto a ninguém, esse é um mistério que na Mina tem, eu sou um moço no mundo de Tenterém” (cantando). Tenterém é um lugar de encantaria. Cantaria é um lugar onde tem uma tranquilidade, um equilíbrio, que a gente sai pra buscar alegria, essa questão de falar, povoar, brincar, dançar, que lá não tem. JL: Então é triste lá? SC: Não é triste também, mas não tem, é um silêncio. JL: Os encantados convivem uns com os outros lá na encantaria? SC: Depende da família e de cada lugar de encanto. Um exemplo: tem a Pedra de Itacomim, tem a Ilha do Algodoal, tem a Ilha dos Caranguejos, tem a Pedra de Dom Carlos. Qual é o encantado? Qual é as trincheiras? Qual é os portais? Onde descarga cada portal? Como é que se passa? Quem é de família tal? As correntes? As essências? Não é assim como você [que] sai daqui e vai pra Portugal, vem pra cá pro Maranhão, daqui o senhor vai pra Bahia. Não, não é assim, a coisa é muito espiritual. JL: É um mundo então com mais sossego, mais tranquilidade? SC: Sutil, um mundo sutil, de equilíbrio. JL: Aí eles vêm buscar no mundo dos pecadores o quê? Alegria? SC: Alegria, brincar, já viu encantado sozinho? Encantado gosta de festa. JL: Gosta também de ajudar, né? SC: Também, depende de cada corrente, como eu lhe disse. Às vezes, a gente vem com missão de poder ajudar, então a gente faz uma troca, vou, mas eu tenho que fazer, eu venho pra alguma finalidade, com a finalidade do equilíbrio, elevar a espiritualidade daquele individuo, ajudar aquele que está precisando, está entendendo? JL: Dos encantados, Rei Sebastião veio primeiro na cura depois passou pra mina ou veio logo na mina? SC: Todos os encantados vieram na cura. JL: Nobres também? SC: Tudo na cura. Dom Luís, tudo na cura. Tanto que Rei Sebastião tem uma doutrina que ele canta assim na cura: “o tempo foi o meu mestre, que me ensinou a curar, o tempo foi o meu mestre, que me ensinou a curar, passei três dias de bruços debaixo do Humaitá, quando eu me ‘alevantei’ aí eu tempo estou pra curar, passei três dias de bruços debaixo do Humaitá, quando eu me ‘alevantei’ aí eu tempo estou pra curar” (cantando). Antes de ter qualquer transe, a pajelança indígena já tinha sido da encantaria. Então, muitos encantados vinham nos pajés das tribos, daí foi que vieram aprender. A gente hoje aprende a fazer remédio de mato, tudo foi assim umas trocas. Vamos supor se estivesse aqui Dona Mariana em cima de Seu Wender. Que região Dona Mariana é? Turquia, né? Como é que ela aprendeu a pegar um mato desse aí e fazer um emplastro numa isipira? Aprendeu na pajelança. Fumar cigarro, beber, aprendemos tudo na pajelança. Quando os africanos vieram, que fundaram as casas aqui de matriz africana é aquela história. Averequete, um dos voduns Nagô, hóspede da Casa de Jeje, desce na mata pra pedir permissão pra quem eram os donos da terra do Maranhão. Os índios, né? Aí, só que quando ele desce, ele encontrou uma ampla espiritualidade, uma junção de povos: europeus, franceses, italianos, tudo dentro da pajelança, maranhenses, índios, pescadores, tudo, pajé. “Vamos fazer uma troca, vai ter um espaço aí pra gente ‘baiar’”, então quem é o primeiro? Chama Caboclo Velho, foi o primeiro caboclo a ‘bradar’ num tambor de mina dentro da Casa de Nagô, que se canta assim a doutrina: “eu só vim aqui por que fui chamado, meu capote é de veludo, meu chapéu dourado, também tenho um cavalo para andar montado, o meu capote...” (cantando). Primeira doutrina de encantado dentro da Casa de Nagô, foi de Japetequara, Caboclo Velho, Sapequara como é chamado, rei dos índios, da família Ramos, foi o primeiro caboclo. Aí depois que ele ‘bradou’, aí apareceu Anastácia do Rei da Turquia, Zacarias Sussurrupira, que vão miscigenando os terreiros de São Luís todos. A encantaria foi tomando de conta, por isso que a gente tem esse espaço. Já reparou quando o pai de santo ele está cantando, ele vai cantar pra Averequete? É sinal que o tambor vai virar, porque ele, Averequete, é o padrinho da mata, dos encantados. “Vou chamar Averequete, vem moço da cana verde, vem moço da cana...” (cantando). Aí cada uma casa tem seu fundamento, tem suas histórias e assim se vai disseminando. Encantado vai chegando, está no segundo patamar abaixo do vodum. Porque o vodum, ele abre o ciclo da espiritualidade, influência de Oxum, essa coisa toda. Só que em certo momento a gente adentra, porque os portais são abertos, então é uma espiritualidade que foi uma troca: “olha! tu fica aqui, a gente pode ter acesso”. Tu já viu como é engraçado Tambor de Mina, que tem tudo isso? Tem a pajelança, tem o vodum, tem o orixá, aí tem o encantado e tem a pajelança, porquê tanta mistura? Esse é um Tambor de Mina próprio maranhense, não existe em outro lugar, tem um tambor maranhense que eles tocam no Pará, estilo Pará, um tambor maranhense que toca estilo São Paulo, paulista, mas aqui nasceu o Tambor de Mina, essa versão nasceu aqui, em mais lugar nenhum tem, só aqui no Maranhão. |
«Então assim, toda encantaria, ela tem sua história, mas ao mesmo tempo se contradiz pros curiosos, pros que querem saber de onde é e como é. Nem se tudo sabe. Aí tem uma doutrina que se canta: “segredo do mar eu não conto a ninguém, esse é um mistério que na Mina tem, eu sou um moço no mundo de Tenterém” (cantando).»
JL: Quais são assim as diferenças principais entre a encantaria e o mundo dos pecadores?
SC: A diferença é essa agora de poder conversar com o senhor, o senhor me respeitar enquanto encantado, mas olhando Seu Wender, isso é uma diferença. Outra, de poder ajudar um pecador que precisa de alguma coisa, ele ter uma prosperidade. Na encantaria não tem isso, essa é outra diferença. Na encantaria, onde eu me energizo, eu tenho toda minha dinâmica, meu direcionamento enquanto encantado pra poder vim no mundo aqui ser desenergizado e poder também levar um pouco da energia de cada um. Então, tem as trocas, tem as trocas, tem tudo isso. A energia que eu levo pra lá é de saber que eu pude ajudar algo e lá eu me direciono, ganho alguns status a mais, uma energia a mais, um direcionamento a mais, uma influência a mais, de poder estar em cima desse menino. Eu uso esses tipos de palavras que não é de encantado, mas que eu tenho que usar, porque ele é um ser humano, vive nesse mundo de vocês e é com essas palavras que vocês trocam de informações. JL: Lá na encantaria não tem cigarros, vinhos, cervejas? SC: Não. JL: O quê que tem? SC: Vou cantar uma doutrina respondendo o que é encantaria. Nessa doutrina o senhor vai saber. “Oh que coração tão limpo, o fogo não queima, a água não resfria, eu moro é no meio daquela Baía, e fogo não queima, a água não resfria, eu moro é no meio daquela Baía, mas que coração tão lindo, oh qu coração tão lindo, o fogo não queima, a água não resfria, eu moro é no meio daquela Baía” (cantando). Encantaria é um espaço onde você respira esse ar. Agora, é indescritível, não tem como descrever a encantaria. Não tem como descrever, não tem, é uma coisa mágica e ao mesmo tempo é como vocês, é essa coisa aqui. JL: Lá na encantaria tem emoções? Amor, orgulho, traição? SC: Tem isso às vezes, mas eu não sei lhe caracterizar diretamente se são esses tipos de sentimentos humanos, né? Porque eu estou agora em cima de uma pessoa que tem tudo isso, sentimentos, motivação, tem tudo. Se eu for falar pelo que eu estou em cima dele, eu podia dizer que sim, mas enquanto encantado eu digo que não. JL: Então os encantados também vem buscar esse lado das emoções? SC: Com certeza, a gente sente. Aqui, tem ano aqui, numa festa de Seu Légua, eu pego Seu Wender e choro, não é um choro que eu queira, mas eu forço o que está guardado no meu filho, a lembrança do finado Jorge, eu boto a emoção pra fora. Por ele, em primeiro lugar e depois por mim como encantado que vivi naquela casa ali. Teve toda uma história, teve todo um direcionamento, um agradecimento de onde ele está hoje e ao mesmo tempo uma revolta. Porque ele disse que se Jorge estivesse vivo ele não estava em [seu] terreiro, ele estava por lá. E ao mesmo tempo pela morte de Pai Jorge eu conheci outras pessoas que me respeitam, sou pai de santo, tenho amigos, nunca estou só. Não é contraditório? Então tem isso. Na festa de Dom Luís, quando dá meio-dia que chega a procissão, Dom Luís pega ele e começa a falar mas na verdade não é o Dom Luís e sim Seu Wender se lembrando do ponto xis daquela festa que tinha [em casa de Jorge]. É Dom Luís, mas a emoção é de Seu Wender, coisa ali que está saindo é de Seu Wender, né? Dom Luís está ali, mas a emoção, aquela coisa é uma particularidade dele. Quando eu tomo uma cerveja às vezes e ele está angustiado, ele quer alguém pra conversar, eu venho conversar com ele, em cima dele tomando uma cerveja. É que muitas vezes na vida de Seu Wender eu sou como se fosse uma válvula de escape. Às vezes quando eu o vejo angustiado, “ah! Seu Cravinho está apaixonado, escutando aquela música, não sei o quê”, na verdade eu estou conversando com ele, “rapaz! Te acalma, as coisas vão acontecer, o tempo é mestre de tudo, só o tempo pode dizer quem é quem, você já percebeu isso? O tempo é mestre de tudo, hoje você está em cima, amanhã você está embaixo, hoje você tem, amanhã você não tem, o tempo, ele comanda a vida de vocês que está em cima de mim, por isso que eles morrem”. JL: O encantado pode baixar em vários vários terreiros, né? Seu Cravinho guarda a memória de outros terreiros? SC: Não, memória não, mas às vezes a essência sim. Exemplo, tem uns filhos de santo que eu passo em outras casas, mas eu tenho alguma essência que era daquilo, em cima de Seu Wender. Teve um ano aqui engraçado. Festa de Seu Jariodama, 3 de agosto, a gente estava dias antes, né? Eu estava bebendo, estava aqui a filharada todinha, eu disse: “olha! Eu venho dançar tambor dia três do lado de Seu Jariodama”. E o pessoal “como? Jariodama só tem Wender que recebe, Seu Cravinho vem dançar em cima de quem? Ah! Assim o senhor vai bagunçar a festa de Seu Jariodama, o senhor vai dançar disfarçado como ele?” “Eu não! Eu vou dançar com vocês”. Eles me levaram na brincadeira. Dia três, o tambor pegado, Seu Jariodama em cima de Seu Wender e eu desci em cima de Dona Silvana no táxi, parei o táxi bem aí, mandei parar o tambor, “eu não disse que eu vinha dançar aqui do lado de Seu Jariodama com vocês?” O povo se espantou. “Eu não disse? Uma cerveja, eu quero beber cerveja, eu já vim pra cá (bufando), eu não disse que eu vinha dançar essa pôrra rapaz. Agora eu vou deixar ela em casa e volto pra terminar de beber”. Quatro horas eu raiei em cima de Seu Wender, a gente amanheceu aqui e foi até duas horas da tarde. E aí, depende da essência, tem dia que em cima de Seu Wender eu estou na minha essência, tem dia que eu não estou na minha essência, mas eu estou em cima dele, é o dia que eu não estou pra trabalhar, é o dia que eu não estou pra trabalho, é o dia que eu não estou pra estar falando. Hoje veio uma senhora: “Seu Cravinho eu estou passando umas coisas assim”. “Olha! Hoje eu não posso lhe olhar com bons olhos, realmente a senhora está carregada, mas é o seguinte, a senhora vem dia 23, que eu vou estar curando no tempo, eu falo o que a senhora quiser”. Porque eu já fiz dois serviços, então é negatividade de um, negatividade de outro. Então isso é uma responsabilidade, de pegar uma energia de um e botar no outro. Nem todo dia a gente está, tem dia que eu estou aqui sentado, né? Daí eu “pá, pá, pá, pá! É isso assim, assim, assado. É assim, foi assim, assado”. “Ô! Seu Cravinho obrigado, Seu Cravinho pegue aqui pro senhor comprar uma cerveja”. “Me dê aqui, pode ir”. Às vezes não tem vela, não tem bebida, não tem nada, a coisa acontece. Depende da essência, quando Seu Wender está bem espiritualmente, hoje eu não estou legal, ele chegou quatro horas da manhã, rapaz! Ele está cansado, a mente dele está cansada, estava na vagabundagem ontem, ele está cansado, aí ele não fica bem. JL: Como é que os codoenses chegaram aqui nos terreiros de São Luís? Chegaram no Egito primeiro? SC: Olha! Na Casa de Maximiana, foi a primeira pessoa a tocar Tambor da Mata dentro do Tambor de Mina em São Luís, né? Isso é derivado já de Terecô, começamos por lá, Seu Légua Bogi chamado Boço Légua em cima dela. JL:Começou por lá? SC: Por lá, e a coisa tomou uma dimensão que hoje está em todos os terreiros, mas também porque as encantarias é mais próxima, é mais energizada, tá? Mais próxima no sentido Brasil, não é? Da territorialidade… JL: E os Encantados da Turquia? SC: Começou na Casa de Nagô e se proliferou, aí eu não tenho como lhe dizer exatamente quais foram as casas que eles povoaram, qual foi a primeira, qual foi a segunda, qual foi a terceira, mas cada um tomou seu direcionamento, sua forma… JL: E Dom Luís baixou pela primeira vez onde? SC: Mãe Alda, na Casa de Nagô. JL: Os encantados têm a noção de tempo, do tempo que passa, como os pecadores têm? SC: Não, um dia pra vocês, pra gente é como se fosse um mês. Se eu vier hoje e depois de amanhã eu vou dizer, “rapaz! Quanto tempo a gente não se olha”, entendeu? Pra vocês não, “eu lhe olhei ontem”. JL: Na encantaria tem árvores, pedras, castelos? SC: Tem, tem tudo isso, a doutrina é: “o quê coração tão lindo, o fogo não queima, a água não resfria, eu moro é no meio daquela Baía” (cantando). Tem que ser uma coisa mágica. Já diz o nome: encanto. O que é encanto é encanto, se encanta de quê? Pelos seus olhos, pelo que você escuta, pelo que você convive, pelo que você sabe e não sabe, se encanta. JL: Qual a diferença entre corrente, linhagem e família? SC: A linhagem ela está dentro da pajelança, é uma maneira de a gente se expressar, “a minha linhagem é de cura, venho no tambor de cura”. Corrente é da umbanda, linhagem é pajelança e família é mina. Isso já é uma maneira do pecador poder se organizar. JL: Tem caboclos que são turcos, que é uma família, mas pode ter caboclos que não tem família? SC: Tem caboclo que não tem família nenhuma no sentido que se encantou e ali ele foi ajuntado em tal terreiro. Exemplo, aqui tem um caboclo chamado Imbaúba, ele não tem família, ele está dentro da família de Légua, foi adotado aqui, em outra casa ele pode ser adotado noutra família. Cada casa tem sua particularidade. Eu, nessa casa aqui, eu sou Cravinho, eu não posso ser Cravinho em outra casa, eu posso ser Assassino de Codó, João Carrasco, Cravo Roxo, mas Cravinho é em cima desse menino aqui, Cravinho é em cima dele, não tem outro Cravinho. Dizer: “ah! Eu sou Cravinho…” Não, não adotou o Cravinho de Wender, mas eu posso ser Seu Cravo, Cravo Roxo, João Carrasco, são apelidos que eu tenho em cima de outras cabeças, mas esse Cravinho é particular meu em cima de Seu Wender. JL: Dom João é o mesmo que Dom João Soeiro? SC: Não. Dom João é um, Dom João Soeiro é outro, Dom João de Mina é outro, Dom João de Lima é outro, João de Una é outro, são vários Joões. Isso aí foi uma coisa de lá do próprio terreiro do Egito [que] tinha tanto João: João Navalheiro, João da Pena Branca, João da Pena Cinzenta. Assim, de cada família, de cada dinastia. São como eu lhe disse: apelidos, às vezes nomes. Mas os encantados são conhecidos só por apelidos [os nomes não pode dizer]. É uma norma, uma estratégia pra não estar popularizado em outros terreiros, charlatões. JL: Ainda mais perguntas sobre entidades. Por exemplo Rei da Bandeira? SC: Rei da Bandeira é um nobre que tem um navio chamado Boa Esperança, por isso que tem aquela doutrina que diz assim: “Boa Esperança nós vamos ao mar, correr mundo em geral, Boa Esperança leva Maria [… ]” (cantando). Maria é a mulher de Rei da Bandeira. Só teve um filho, chamado Caboclo do Olho D’Água. Único filho da Maria, o resto foi tudo adotado. Boa Esperança era o nome dos navios que vieram com o navio de Dom João, com o navio de Dom Luís, três navios que vieram da encantaria. Os Bandeirantes são donos da marcação vermelha, verde e amarela, que os turcos usam, na verdade a marcação deles era essa. Quando eles apareceram com essa marcação os Turcos roubaram. Porque a marcação dos Turcos era vermelho e branco, [mas] como na Casa de Nagô essa marcação é de Xangô, em respeito à casa, eles não podiam usar essa marcação. Então, o que é que eles fizeram? Roubaram a marcação dos Bandeirantes. Por isso que tinha esse atrito antigamente nos terreiros, hoje não, não se vê isso, mas antigamente Bandeirante não dançava junto com Turco no mesmo barracão. Aí com essa questão toda dessa briga, o que é que aconteceu? Os Bandeirantes acabaram agarrando o branco, pra dar a real intenção da trégua, aí começaram a criar os filhos uns dos outros, então são praticamente compadres, primos, irmãos. O terreiro onde Bandeirantes nasceram era o Terreiro de Nhá Alice, Rei da Bandeira, que era aqui no antigo CEFET, um dos terreiros de nome e renome de São Luís do Maranhão. De encantaria que nunca se viu, mulheres da Casa de Jeje, da Casa de Nagô, do Terreiro da Turquia, do Cotim, do Terreiro do Egito. Iam olhar tambor, eram sete, oito, nove dias de tambor. Tem uma doutrina que quando o Rei da Bandeira descia cantava assim: “Upa tambor, upa tambor que a mina toda ainda não baiou, upa tambor” (cantando). Quem estava lá que tinha encantado se ‘atuava’, “upa tambor que a mina toda ainda não baiou, é de cana caê, é de cana cão, levanta a bandeira é de cana caê, é de cana caê, é de cana cão, levanta a bandeira é de cana caê, upa tambor, upa tambor que a mina toda ainda não baiou” (cantando). JL: Lá na casa de Pai Jorge, foi que a família da Gama criou raiz. Ela veio do Egito, né? mas lá ganhou muitos filhos. Aqui na casa tem muitos filhos de santo que recebem? SC: Tem. Tem Seu Wender que é com Dom Henrique, mas Dom Henrique vem na côrte de Dom Luís ainda em cima dele, nunca puxou essa linhagem. [Mas] a corrente de Gama não é aqui uma corrente ainda muito fortalecida, não tem tempo, só tem 13 anos. Então essas coisas não podem entrar de uma hora pra outra, aos poucos é que vão chamando as correntes, pra não dar choque de correntes, né? Então, está se adaptando aos poucos e essas coisas vão acontecendo devagar. JL: Quais são as correntes principais aqui? SC: As correntes principais daqui é de Dom Luís Rei de França, com sua nobreza, sua côrte, Légua Bogi Buá da Trindade, que é Sete Bandeiras da Assunção em cima de Pai Wender, Raimundo Tocoeiro, chamado Raimundo, Seu Tucual, que traz a corrente do povo Surrupira, Caboclo Jariodama Ferrabraz de Alexandria, que traz a corrente dos turcos e Cravo Roxo, que traz a corrente do povo Maceodá, que é meu povo, eu tenho meu povo particular. JL: É codoense, né? SC: Não, somos vizinhos. Somos vizinhos dos Surrupiras. JL: Outro dia astava-me dizendo que Surrupira está desaparecendo? SC: É, nas casas tradicionais já não tem, né? Naquelas casas que tem uma regência espiritual do Tambor de Mina ainda é mantida. Hoje em São Luís se proliferou vários terreiros que se dizem Tambor de Mina, mas na verdade já está uma mistura com Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Minablé… Misturou tudo, aí você não sabe direcionar quem é quem. Estes tipos de correntes, como eu lhe falei, ninguém quer mais carregar, porque às vezes não sabe a essência, não sabe o fundamento próprio daquela encantaria, às vezes o encantado também se encantou de uma certa forma, se reencantou de novo, está entendendo? No fundo, não tem humildade de procurar quem sabe fazer a coisa acontecer e o povo se 'abitolou' na Mariana, Chica Baiana, nesses tipos de entidades. Pode reparar, todo mundo é codoense, bota um chapeuzinho na cabeça, uma calça arribitada e cachaça, cachaça, cachaça, cachaça e isso hoje é modelo de muitas casas daqui de São Luís, isso é perigoso. Eu danço tambor, mas não danço de chapéu dentro da guma, porque eu respeito a guma da casa. O único que usa alguma coisa nessa cabeça aqui se chama Xangô, que é a coroa, coroa do rei, de búzios, não é coroa de ouro, porque cada búzio equivale a uma jóia. O ouro do africano era o búzio, sabe disso? E Dom Luís Rei de França, que não dança de coroa em cima de Seu Wender, a simbologia da coroa em cima dele é ele em cima do próprio Wender, né? Eu uso um chapéu porque eu vim de uma casa que lá os codoensenses em dia de festa, Seu Légua dava chapéu pra fazer aquela festa, com isso aí eu me acostumei. Eu sou adaptado à Casa de Iemanjá, eu fui adotado por Seu Légua, [mas] eu sou mais velho do que Seu Légua. Quando Légua chegou em Codó já me encontrou. Em cima desse menino eu sou jovial, não me pergunte porquê, é por causa da essência dele que é de Tambor de Mina e a minha é de cura. JL: Essa família da Gama é família de nobres? SC: Família de Gama é uma família de nobres com várias misturas, eles têm várias correntes, tem o Povo de Boto, Povo de Peixe, tem alguns que tem nome de anjo. O símbolo principal dessa família é o símbolo do tridente, né? Porque tem muitas doutrinas que falam: “um cardume de peixes, somos tubarões, meu pai é Miguel da Gama, mora no manancial, meu pai é Miguel da Gama, mora no manancial” (cantando). Por isso que muitas pessoas dizem assim: “êi! Eu até sou da família de Dom Miguel, mas qual é esse São Miguel? Com a espada? É o São Miguel que está com a balança? É o São Miguel que está com a lança?” Já reparou no santo? E a simbologia dessa família tem [também] essa história, os que pegam as almas, que são nomes de anjos, que passam na corrente astral também, que é Rafael, Salatiel, Anael, são povo de Gama. Tem o Povo das Águas, que é o Povo Tubarão, Baliza da Gama, Capinzinho de Gama, né? E tem o Povo da Lança, que é Dom Miguel, não tem mais quem, não pode estar falando. |