O pai de santo e os seus encantados - O Pai de Santo e a casa
Entrevista com pai Wender
Agosto 2014
Pai Wender (PW): Meu nome é Wender Loredo Pinheiro, estou atualmente com 33 anos, filho de Jurandir Santos Pinheiro e de Nilde de Jesus Loredo Pinheiro, sou ludovicense, maranhense, brasileiro. Minha experiência dentro da religiosidade de matriz africana começou, acho eu, desde meu nascimento. Minha mãe era doméstica, dona de casa, meu pai, perito do Instituto de Criminalística na época, também taxista. Minha mãe era devota do Divino Espírito Santo, como minha família toda da parte de mãe. E uma dessas minhas tias, duas ou três eram já de Tambor de Mina, já dançavam em terreiros daqui de São Luís, inclusive, da casa do Pai Jorge, lá no terreiro de Iemanjá.
Então, com cinco anos de idade eu tive a perda da minha mãe, teve derrame cerebral e fui criado por quatro homens, são meus irmãos: Wander, Walber, Júnior e Sérgio. Meu pai na época trabalhava no interior e eu fui nascido e criado naquele bairro chamado Fé em Deus, aonde estava o terreiro de Pai Jorge. Sou afilhado da esposa do Pai Jorge, a Raimunda, chamada Dona Bidoca e me criei daquele bairro. Então, fui crescendo, olhando as tradições ali, as brincadeiras folclóricas como o Bumba Boi e outras manifestações culturais daquele bairro. Quando chegou aos 10, 11 anos me despertou a questão da religiosidade, né? Primeiro eu tinha uns sonhos, esses sonhos me angustiavam muito, na verdade eram pesadelos, me angustiavam muito e sempre acordava pela madrugada sobressaltado dentro desses sonhos. E assim eu fui crescendo, rezando, tudo. E chegou uma certa época, aos 11, 12 anos de idade, meu pai teve uma precisão. Pediu pra um dos meus irmão ir na casa do Pai Jorge, que era compadre dele, né, pra conversar com um dos encantados pra saber o quê que estava acontecendo lá no interior. Como ele trabalhava por lá como delegado de 2ª classe, ele queria saber o que estava acontecendo, [tinha] algumas coisas esquisitas e pediu pra um dos meus irmãos ir lá na casa de Pai Jorge. Meus irmãos, como eram tudo assim adolescentes, ficaram com vergonha de adentrar no terreiro. Detalhe: todos esses meus irmãos quando minha mãe era viva, ela sempre colocava em promessa ao Divino Espírito Santo, como ela era devota, sempre meus irmãos passavam como imperador, mordomo régio, inclusive eu fui nesse cargo do Divino Espírito Santo até mordomo régio, nunca concluí como império porque ela faleceu e logo após minha tia faleceu. Aí moral dessa história toda, eu começei ir nas sessões, dia de terça, na casa de Pai Jorge pra levar em nome do meu pai o que estava acontecendo. E aí eu me deparei com um encantado chamado Légua Bogi em cima do Pai Jorge e ele falou, além da situação do meu pai, da história da minha mãe, né? Que minha mãe era doceira, era devota e aquilo ali foi-me despertando, porque até então, eu não sabia nada dela, isso ali foi me levando por lá, na casa da minha madrinha. Fui-me acostumando, me adaptando ao critério do terreiro. Como? Meus irmãos todos namoravam, um noivou logo, o outro casou, fiquei morando só com um chamado Walber. Então, eu estava livre pro que desse e viesse, eu não tinha rédea na minha vida, eu saía e chegava a hora que quisesse, eu fazia o que queria e pronto. Encontrei no terreiro um acolhimento e comecei a viver ali. E ali foi-me despertando o interesse sobre a minha família, os encantados, comentando, falando. Foi como eu soube que eu fui até mordomo régio e o próprio Légua em cima do Pai Jorge disse que eu tinha que reinar como imperador na casa. E assim foi. Porque eu nunca cheguei a ser império da casa, rei, nunca reinei na festa do Divino, porque tinha falecido esse meus parentes, como eu contei atrás. Então, eu comecei a me envolver mais no terreiro, comecei a andar com Pai Jorge, comecei a viver aquela questão de terreiro e comecei a tocar tambor. Isto na idade de 13, 14 anos, só que eu não tinha o entendimento, né? Eu achava que eu não tinha essa coisa de incorporação. Aí eu fui saber que quando eu era bem criança minha mãe me botava na mesa de inocente, na mesa de Acóssi, pra participar das obrigações, e fui sabendo de coisas minhas ligadas àquela religiosidade. E toda vez que Pai Jorge estava incorporado por Iemanjá, que era senhora dele, ela dizia: “você é meu filho, eu lhe vi crescer”, me pegava e me botava no colo e fazia carinho. Moral da história, eu fui vivendo ali, fui aprendendo. Como eu era inocente no sentido sexual, eu comecei a participar de certos rituais na casa e aí comecei tocando tambor. E aí teve meu envolvimento todo com a religiosidade. Quando chegou na faixa dos 14 anos, eu comecei-me a sentir mal. Aí teve uma procissão de São Luís Rei de França no período da festa do Divino. Nessa época Pai Jorge estava um pouco debilitado. Aí nessa procissão, na minha chegada, vindo da procissão de São Luís Rei de França, eu tive um mal-estar, além desse mal-estar eu tive um tipo de emoção que lembrou a minha mãe, não sei em quê. Eu não tinha uma lembrança dela, mas foi alguma coisa ligada a ela… Então, comecei a sentir mal. Nessa ocasião que eu comecei a sentir mal, adentrei num quarto, chamado quarto de Dom Luís, onde ficam umas imagens católicas, que é a referência ao dono da casa também como gentil. E eu adentrei nesse quarto querendo fugir dos olhos do povo, pra não acharem que eu estava incorporando ou passando mal, pra não chegar esse comentário em meu pai, porque meu pai, ele tinha discriminação perante a questão do homem que dançava tambor: [que] era homossexual, [que] eram pessoas que não tinham valor... Eu adentrei nesse quarto, passando mal, como se eu tivesse gritando, mas ninguém me escutava. De repente minha madrinha, Dona Raimunda, desce a escada e ouve um sussurro, quando ela se depara comigo naquele quarto chorando. Pam! Vão e chamam Pai Jorge, só que Pai Jorge estava na quadra, onde atualmente hoje é uma praça. Era o levantamento do mastro e ele estava com Dom Luís. Como meu pai Dom Luís não podia levantar em cima dele pra vim [ver] a minha situação, mandou o filho de santo chamado Antônio, que já tinha casa aberta na época, que a gente chamava de Antônio Raquel. Na verdade Antônio veio com uma caixa do Divino, entrou no quarto e disse: “bota tua cabeça aqui na caixa que eu vou tocar”, aí tocou coisa assim de segundos e disse: “isso é tua senhora”. Só que eu fiquei sem entender, até então eu não tinha um entendimento total. Quando eu me deparo, meu Pai Dom Luís em cima de Pai Jorge já estava no quarto me olhando e disse: “olha! Você me pertence”, pegou lá o maracá, pediu pra mim levantar. Levantei meio tonto, né, com aquela sensação assim de desmaio e ele assoprou em meu nariz ele colou a boca na minha e assoprou também. Aquilo ali foi aliviando e ele disse: “você é meu filho, está marcado pra mim, o seu reinado um dia vai ser na sua casa e no seu próprio momento”. E aquilo ali passou como se nada tivesse encaixado as palavras dele. Aí surgiu comentário e meu pai soube que eu estava incorporado, aí meu pai começou no outro dia [a] falar, evitando que eu fosse práquele terreiro, começou a ter um tipo de preconceito de certa forma com a minha pessoa. E os anos foram passando, passou uns dois anos, eu não sentia mais nada disso, mas eu ia nos tambores, tocava, brincava por lá. João Leal (JL): Nesse período já tinha um conhecimento bom do Tambor de Mina, né?
PW: Já tinha um conhecimento bom do Tambor de Mina porque eu vivia com Pai Jorge ali, eu era vizinho, qualquer precisão ele me chamava, pra fazer algum tipo de serviço com ele. Às vezes era uma viagem, às vezes era pra fazer um favor, compra no próprio comércio. Às vezes eu não tinha nada pra fazer, eu ia me sentar e olhava ele pintar alguns quadros, escutar música, fazer algum tipo de coisa, enfiava alguns rosários pra ele, aprendi a enfiar rosário por ele e ali eu vivia aquilo ali, né? A minha infância foi toda no terreiro. Participava de algumas obrigações, inclusive, os cortes de Iemanjá dele eu participava, e acabava me envolvendo dentro dessa situação toda. Então, foi-se passando o tempo. Com uns dois anos, eu na faixa dos 16, 17 anos, fui no terreiro da finada Margarida Mota, assistir um tambor. Eu entrei e eu me passo mal de novo, né? Aquela sensação de desmaio, aquela questão toda. Eu só sei que uma dançante chamada Zizi de Légua e de Manezinho, pegou um banho e lavou minha cabeça e disse: “olha você é filho do meu pai”. Também não entendi [mas depois] conversei com Pai Jorge. Pai Jorge: “olha Guiga! Essas tuas coisas são muito complexas, tu tem essas coisas, tu sabe muito bem disso, né, tu foi nascido e criado aqui”. Ele dizia que eu tinha o umbigo plantado, agora não sei qual relação, se era meu umbigo mesmo ou se era questão de família, de tradição ser daquela casa dele. E assim foi se passando o tempo, eu comecei a ter envolvimento com o transe, comecei a sentir mal, comecei a passar mal em algumas obrigações. E teve uma época que eu fui convidado pra ser padrinho de uma filha de Oxóssi da casa de Pai Jorge. Nesse dia foi um ritual interno e nesse dia eu desmaiei, foi, dizem as más línguas, que foi a minha primeira possessão. Isto na faixa dos 16 pra 17 anos. Assim, foi muito rápido, eu não sei detalhar as datas porque como eu era assim muito novo, eu não guardei, eu guardei as cenas, mas não as datas, né? Tentei-me afastar, passei na faixa de quatro, cinco meses sem ir na casa com medo daquilo ali poder vim a acontecer, mas depois de uma conversa que eu tive com Pai Jorge aquilo ali parou, pronto! Às vezes eu ia tocar tambor em outro terreiro pra ganhar um dinheiro, pra fazer um favor e eu me deparei com um terreiro no bairro do Cohatrac, que era de Umbanda, o terreiro de Dona Teresa, hoje ainda viva e atualmente minha madrinha do santo. Chegando nessa casa, eu desafiei um encantado chamado Cravo Roxo, esse encantado eu tive uma discussão com ele e ele me jurou que eu ia pagar. E eu disse, “é! Se o senhor é encantado, também tenho encantado, sou filho de Seu Légua, sou filho de Dom Luís”. Assim, empolguei pela questão da casa de Pai Jorge, de ser filho de Iemanjá e Pai Jorge na época, né? Um grande baluarte do Tambor de Mina e eu, com meu pouco conhecimento, achava que encantado nenhum ia estar com história comigo porque eu sou filho de Jorge Itaci de Oliveira, um dos grandes babalorixás e aí eu me ferrei neste sentido. Esse encantado cismou comigo, me embriagou e de cima dessa senhora, ele passou pra cima de mim e daí começam os ciclos de transe, de desequilíbrio espiritual com ele. Ele me agarrava em parada, em outras festas, ele começou a me povoar nesse sentido, pronto! Meu pai começou a saber dessas questões, aí começou toda uma discriminação, meu pai começou a me botar de castigo, ele já não queria mais pra eu andar nessas coisas. E esse encantado não me pegava quando estava meu pai de santo, só me pegava em momentos que ele não estava e ficava aquela questão duvidosa, as pessoas comentavam, ele não me possuía na casa do meu pai de santo, que era o Pai Jorge, então, ficou essas coisas duvidosas. Então, passado o tempo, questão de meses, eu vindo de uma boate com minha ex-namorada, né?, adentro o tambor da casa do Pai Jorge, era seis de janeiro. Eu devia ter uns 17 ou 18 anos. Aí eu tive a possessão do meu Pai Xangô, foi quando meu Pai Xangô me pegou e dançou tambor a primeira vez. Pronto! Me despertei, minha namorada me levou pra casa. E chegando nesse ponto, no outro dia Pai Jorge vai e diz: “olha! Você perdeu sua virgindade assim de uma maneira bem descontraída”. Eu: “virgindade?”. Ele: “é o seu vodum veio ontem, meu filho, não tem pra onde correr agora, enquanto era o encantado te pegando escondido era uma coisa, agora é seu vodum”. Com isso, o quê que acontece? Meu pai soube, aí começou todo o meu martírio na minha casa, meu pai teve uma discriminação, até por falta de conhecimento e achava que estava perdendo o filho dele para aquela religiosidade, né? Aí começamos os embates, ele começou me proibir, começou cortar as coisas que ele me dava, roupa, mesada, eu era um jovem normal como qualquer um outro, ele me dava todo um apoio, até chegado um momento que a gente não soube separar mais o que era pai e o que era filho dentro de uma casa, a gente entrou em confronto. A gente acabou tendo um tipo de agressão, e eu disse pra ele que a partir daquele dia eu ia sair daquela casa e eu ia viver minha vida. E ali eu fiz, saí da casa, né? E não voltei mais, foi quando eu me amasiei com a minha ex-mulher, Aline, que é mãe do meu filho. Depois de um ano veio a obrigação com Pai Jorge, né? Nessa obrigação eu fiz minha iniciação. Durante esse tempo todo, dos meus sete anos de idade até os 18 eu tive vários processos indicativos que eu era da religiosidade, a própria Iemanjá em cima do Pai Jorge dizia que eu ia ser feito pra ela, tinha algumas obrigações que eu passava mal, o meu próprio pai Dom Luís quando chegava a missa [da festa do Divino], teve uma vez que ele pegou a camisa do Pai Jorge e passou pra cima de mim, isso visto por muita gente, por muitas voduns. Então, aconteceu vários tipos de cena durante esse meu período religioso de iniciação na casa do Pai Jorge, foi como que se fosse confirmando toda a minha história dentro dessa tradição O ano da minha iniciação foi dois mil. Com muita dificuldade, a ajuda da minha ex-sogra, que me ajudou, junto com o Alex, que é filho carnal do Pai Euclides, né? Ele foi um grande amigo, me ajudou, me deu a sandália, me deu toalha, me organizou junto com essa minha ex-mulher, que foi assim uma pessoa excelente na minha vida até no tempo que a gente viveu juntos e junto com a minha sogra. De irmão mesmo, só um irmão quis saber, que é o Júlio Sérgio, ele é um irmão de criação, esse aí sempre me deu equilíbrio e apoio, os outros não, viraram as costas, né? Foram atrás da questão do meu pai. E assim foi começando toda a minha trajetória espiritual até chegar a morte do Pai Jorge, que foi assim um abalo na minha vida. Mas quando Pai Jorge tinha ido embora, eu já tinha conquistado a minha família, o respeito deles enquanto religioso, a admiração deles enquanto pessoa, já estava trabalhando, teve vários processos até chegar nessa maturação que eu tinha vivido ali. Pronto! Pai Jorge falece, eu me vejo sem chão, era, como eu posso dizer, o menino dele, vivia ali com ele, aprendi muita coisa com ele, estava sempre ali com ele, viajava, saía, ia pra encontros, ia pra festas e era todo o tempo ali. Mas dois anos antes dele morrer, eu conheci meu tio de santo, Pai Euclides, que de vez em quando eu ia pró tambor na casa dele assistir, né? Assistir, escutar algumas doutrinas, ver alguns pé de dança, captar alguma coisa que podia valer pra mim futuramente, [mas] não tinha pensamento de ter terreiro, nem passava na minha cabeça, né? Então dois anos antes de Pai Jorge falecer, a minha madrinha Teresinha, que já tinha terreiro lá no Cohatrac, ela me deu um espaço e lá eu atendia às vezes com encantado. Chegou um momento que ela veio até Pai Jorge e pediu se eu poderia acompanhar ela e ser guia da casa dela. Ele, enciumado, que sempre foi enciumado Pai Jorge, com todos os filhos de santo dele, disse que não, que eu não poderia porque a minha história era na casa dele e ele não poderia me liberar porque, ou eu tocava o sino ou eu acompanhava a procissão. Então, chega o falecimento dele, quando eu me deparei, né?, com um vazio enorme na vida, que ele era tudo pra mim e ainda é até hoje. Eu tenho o maior amor, o maior carinho, porque ele foi meu iniciador, foi quem me deu os primeiros passos, me deu orientação, que me botou nessa religiosidade, que hoje eu digo que é a minha vida, né? O falecimento dele pra mim, me abalou em vários momentos da minha vida, o social, o econômico, o religioso e o amoroso. Então, assim, foi um abalo que eu tive de todas as minhas estruturas. E na casa eu não tive uma boa aceitação, porque, como eu andava com ele, vivia com ele, às vezes tinham intrigas, fofocas, comentários, meu nome estava no meio, as vezes as pessoas diziam que eu que intrigava, fazia isso, fazia aquilo e como eu estava ali sempre com ele, eu tinha essa abertura de cantar, de fazer a coisa acontecer, de participar. Às vezes ele chegava, “Guiga! Vambora”. Então, eu acabava me envolvendo e ficava mal perante os outros filhos de santo porque tinha uma regalia, né? Porque minha madrinha Bidoca, a esposa dele, e ele, como eu vivia ali, às vezes, o que eu pedia, eles deixavam eu fazer. Inclusive roupas de santo. Eu cheguei a botar um tipo de moda, né? Enquanto os homens usavam abadá, eu comecei a usar umas camisas ¾, eu não usava turbante na cabeça que muitos lá usavam, então, eu mudei assim um pouco o estilo de vestimenta, que foi uma época de polêmica também. Quando ele falece, eu me vi naquele vazio. Então, aí estava um pessoal filmando tudo e me pediram pra eu dar uma entrevista, coincidentemente ou não, eu estava presente naquele momento e dei, que Pai Jorge tinha falecido, tinha dado infarto, que era um grande baluarte do Tambor de Mina que a gente tinha perdido, que ele tinha passado há pouco tempo por uma cirurgia de hérnia, que ia lançar um DVD alguns meses após e que estava muito feliz, tal, tal. E isso repercutiu. Eu me deparo na noite que ele está presente lá no meio do barracão com minha madrinha, Dona Raimunda, dizendo assim: “Guiga, eu olhei a agenda de Jorge e está escrito que tu tem que fazer algo aí que ele já tinha combinado contigo, você e o Leandro e seis, sete dançantes daquela casa”. Realmente, no falecimento da guia da casa chamada Rosa de Jari, ele, com essas seis, sete dançantes, eu e mais o Leandro, ele tinha dito: “assim como estão fazendo no corpo dela, eu quero que vocês dois façam, você Guiga, e você Leandro façam”. Só que a gente pensou que naquela época ele não ia guardar isso, não ia dizer nada disso. Pronto! Aí minha madrinha vai e me diz. E eu, imediatamente esperei a hora certa e tinha pedido pro povo do barracão, “gente! Eu queria pedir uma licença, porque tem que fazer uma cerimônia aqui de corpo presente, aqui no corpo dele e só vai participar um tanto de pessoas xis que ele na época apontou”. Isso gerou polêmica. Como eu ainda era jovem, eu não tinha todas as iniciações completas, só tinha um orixá sentado, eu estava no cargo de Vodum Assessor Rei da casa, né? E aí tinha voduns antigas na casa, pessoas com casa aberta. Então, o pessoal ficava assim enlouquecido, revoltados e muitos deles não saíram mesmo. Eu fiz o ritual, né? Pronto! Daí surgiu um tipo de comentário que eu ia ser o sucessor da casa, gerou mais polêmica e isso não passava pela minha cabeça e acho que nem pela cabeça dele, né? Isso aí foi comentários que coincidiram de eu estar com ele, sempre ter uma regalia, ser de Dom Luís, né? E também de estar ali com ele no dia que ele morreu e ter feito [esse ritual]. Isso gerou esses tipos de polêmicas. Então, até no sétimo dia, que foi de preceito, eu não participei de fundamento nenhum interno porque não coincidia os horários pra eu estar presente, as pessoas não me avisavam, me tiravam de foco. No sétimo dia, eu tive uma possessão com Dom Luís Rei de França. Segundo meu Pai Dom Luís em cima de mim, foi pro quarto e me contou algumas questões, isso virou chacota na casa, né? Que eu podia estar incorporado com Pai Jorge, sendo de Xangô, essa coisa toda, não entenderam muito bem o recado e nem eu também entendi na época, eu me revoltei, eu também fiquei meio em dúvida do porquê daquilo ali, né? Pronto! Passou uns dois, três dias, o Pai Euclides soube disso tudo, como a gente tinha essa ligação de sobrinho e tio, eu tinha um grande respeito e tenho até hoje pelo Pai Euclides, eu fui numa conversa na casa dele, aí ele vai e pede pra mim, “olha! Meu filho, então se afasta, dá um tempo e seja o que Deus quiser, você tem competência e volte pra abertura da casa, acompanhe tudo e tal e vai vivendo sua vida, quando der pra dançar você vai, dança e tal”. Com seis meses que Pai Jorge falece, eu tenho um encantado chamado Cravo Roxo, esse encantado vai e me pega e chama minha ex-mulher e diz: “Olha! Dona Aline, a senhora vai-me comprar ali cinco dedos de cachaça, uns três cigarros. Me troque uma imagem de São Pedro ou, se Seu Wender tiver aí dentro das coisas dele guardado, bote pra cá, mande comprar um maracá que eu vou benzer esse maracá, que eu vou começar a trabalhar em cima dele”. Eu também assim meio descrente dessa questão toda, que eu não sabia nem por onde ia trabalhar de maracá, ela vai e compra tudo, quando vai pro final de semana que vem, um sábado após esse recado, ele me apanha de supetão, aí preparou uma mesa, botou esse santo, essa dose de cachaça, com esses cigarros e uma vela, começou cantar e tocar maracá. Primeiro dia! Passou 15 dias fez de novo. Na terceira vez que ele fez na casa que a gente morava, a mãe dela recebeu a visita de uns parentes e coincidentemente ou não, um desses parentes estava com uma precisão espiritual e lá estava esse encantado e fez o serviço e acabou o serviço dando certo. Foi a primeira vez que ele trabalhou. Isso em 2003. E a coisa começou a andar e aí pronto! Quando eu me deparei, o pessoal estava tocando a campainha, “ah! Você que recebe essas coisas, encantado e tal? Que mandaram eu vim aqui”, aí eu, “mandaram vim aqui? Mas eu não trabalho diretamente”. Aí encantado me agarrava e atendia a pessoa, pronto! E assim foi acontecendo. Quando eu me deparei eu já estava com umas oito ou dez pessoas tratando espiritualmente, né? Aí em março de 2003, eu vou e digo pra minha ex-mulher assim mesmo: “Aline, eu vou fazer uma ladainha pra Santa Bárbara, né, que eu pertenço a ela e tudo”, mas ela disse, “Wender, Pai Jorge não faleceu? Já estão de preceitos, tu pode fazer isso?”. Eu disse, “olha! Eu vou fazer aqui é só uma ladainha, não vou fazer mais nada do que isso, acho que isso aí não tira pedaço de nada, eu acho que isso pode, é católico, em referência a minha senhora”. “Então tá, eu estou aqui pra te ajudar”. Pronto! Arrumamos tudinho, o pessoal que me acompanhava já com Seu Cravinho veio, vieram tudo, fizemos um almoço e aí quando me deu faixa de meio dia, chegaram cinco irmãos de santo meu, que foi o Márcio de Xapanã, a Eliane de Ogum, a Rosa de Ogum, o Marcos de Xangô e o Herbert de Badé, eles adentraram e deles cinco, quatro disseram: “meu irmão, a gente veio ficar contigo, a gente quer que a partir de hoje tu tome de conta da gente”. Porque lá no terreiro de Pai Jorge já estavam sabendo, os comentários já rolavam, né? Aí então, “está tudo bem, vocês podem se postarem aqui, só que eu não tenho terreiro”. “Não, porque depois que abrir a casa, como tu entende um pouco das coisas, a gente não está querendo ficar [lá], porque sabe como é que está a situação, ninguém sabe quem é quem, ninguém sabe quem vai ficar”. Neste mesmo dia, eu tenho uma entidade chamada Jariodama, que me pegou e pediu pra mim ir na Federação de Umbanda e registrar o terreiro chamado Ilê Axé Oba Izô. Naquele dia tinha aberto o terreiro, né? Tinha aberto aquele meu terreiro. Quando Aline me contou, eu fiquei assim sem saber, “mas que terreiro? Eu não tenho terreiro, esse espaço não é terreiro e ele mandou fazer isso?” Quando vai no outro dia, dia de Santa Bárbara, tem uma senhora aqui chamada Nelma. A filha dela entrou em transe e se incorporou com uma encantada e pediu pra ela trazer até esse menino, Cravinho, pra cuidar dela e assim ela veio e trouxe. Aí eu disse: “olha! Aqui eu estou trabalhando, ela pode sentar, eu posso tratar sim da espiritualidade dela, mas eu não tenho ainda barracão, eu trabalho aqui em casa”. Ela, “ah! Eu tenho uma casa do lado, que é do meu filho e ela está desocupada, tu não quer fazer uma melhoria, tirar isso de dentro da tua casa e passar pra lá? Pode ficar por tempo indeterminado”. Esse tempo indeterminado é atualmente esse terreiro onde eu estou, que era de três compartimento. Conversei com os encantados e tal, Seu Cravinho, aquela coisa toda, abraçou a história, tudo bem, passamos pra cá. Isto em 2004, no meados de março pra frente, só fazia sessões, né? Aí foi quando abriu a casa do Pai Jorge, eu fui nas minhas obrigações, dancei as noites que tinha que dançar, tudinho e tal, aí pronto! Me afastei de uma certa forma. Moral da história, eu barrei com o Pai Francelino [de Xapanã] de São Paulo, aí eu comecei a trocar algumas informações com o Pai Francelino, ele vai e diz assim: “olha! Se tu quiser eu termino tuas obrigações, tu fica comigo e pronto, se puder uma vez ao ano tu vai pra São Paulo cumprir tuas obrigações”. Aí eu “está bom”. [Depois da] minha conversa com Pai Francelino, eu fui numa festa de Pai Euclides, eu tomei benção, e ele, “ei rapaz tu sumiu, quanto tempo e tal”, conversamos, aí tudo bem. Certo dia, esse encantado foi pra uma festa em um lugar chamado Centro de Cultura Negra e lá barrou com Pai Euclides de novo, né? Esse encantado era Seu Cravinho e disse: “olha! Eu gostaria que o senhor olhasse pelo meu filho, que o senhor visse o que está faltando e tal, que ele já está com algumas pessoas atendendo, essa coisa toda”. Aí, o Pai Euclides “olha! Manda ele me procurar, me procurar que gente pode conversar tudo calmo” e assim eu fiz. Um mês depois eu procurei e Pai Euclides disse: “não rapaz! Deixa a casa abrir direito, né? Vai ficando por lá, devagarzinho”. Eu disse “olha! Não dá, eu tenho que me sair de lá, assim eu vou arrumar intrigas”, “não, larga de besteira, fique lá sim, é lá que você nasceu”, aquela coisa toda. Ele vai e me convida pra ir num tambor na casa de José Itaparandi, eu vou fazendo uma companhia pra ele nesse tambor. Aí na metade do tambor eu disse assim “vambora!”. Ele “vambora”. Aí, no nosso caminhar, ele vai e diz assim mesmo pra mim: “olha rapaz! Tu tem uma bagagem muito boa, toda vez que eu ia na casa de meu compadre Pai Jorge, eu te olhava ali tocando tambor, tu sempre ali do lado dele, aquela coisa toda, aquele amor, aquele carinho que tu tinha pelos encantados dele e tal e eu tenho certeza que tu pegou algumas coisas do meu compadre, tanto, que teve essa situação que tu fez lá no barracão, né? E as pessoas vão ter mesmo intriga, inveja, tudo e tal. Eu posso te dar um conselho?”. Eu: “pode sim”. “Pega tudo que tu tem e bota dentro de uma mala e na hora certa tu vai saber abrir”. Eu: “sim senhor”. Aí, isso nos meados de 2004, em setembro, uma entidade chamada Menina do Maracujá em cima de mim, pede pra confecionar os abatá, os tambores e tocou tambor dia de Cosme e Damião aqui, distribuindo bombom e bolo, pronto! Disse que a partir daquele dia o terreiro já estava aberto de uma certa forma. Menina do Maracujá é uma princesa, mas como veio em cima de mim como criança, pra festa dos Erês… Aí, dia 27 de setembro teve esse toque, né? Primeiro toque que teve. Com isso, repercutiu [na] cidade toda que eu tinha aberto um terreiro. Em meados de 2005 eu conversei com Pai Euclides, ele abriu o jogo e disse que Oxalá me aceitava no axé dele, não sei muito bem me lembrar como foi a leitura do oráculo dele e lá eu dei a obrigação com ele, renovei todos os meus axés, porque eu tinha essa necessidade, né? A necessidade de dar continuidade na minha espiritualidade. A primeira iniciação foi só uma, eu tenho um nome, eu fui iniciado por Xangô na casa de Iemanjá, [mas Pai Euclides] me deu minha continuidade espiritual, me deu caminho, ensinamento, respeito à religião, respeito às pessoas da religiosidade, até hoje eu sou grato a ele. Eu arrumei emprego, eu organizei essa casa, as coisas foram acontecendo na minha vida da melhor maneira, então, quer dizer, ele me deu o axé realmente que eu precisava, né? Foi um axé que veio do lado amoroso, veio do lado financeiro, veio do lado social e assim eu fui caminhando até o dia de hoje nessa casa. JL: Assim, o modo como Pai Jorge fazia as coisas, o modo como Pai Euclides fazia e faz as coisas, tem algumas diferenças, né? PW: Com certeza. A diferença tem porque cada casa tem um orixá regente, né? Eles vieram da mesma água, mas cada um seguiu um tipo de caminho e esses caminhos também se cruzam, né? Então, tem muita coisa também semelhante, mas também tem algumas coisas individuais. Eu me confrontei com essa situação. Nesse momento, no meu axé, eu tento equilibrar as duas balanças de uma certa forma, né? Mas assim, meu principal modelo é da casa de Pai Jorge. Aos poucos eu fui implantando alguma coisa que eu aprendi, pouquíssima ainda, com meu Pai Euclides, adaptando cânticos. Um cântico [que] eu pensava que na casa de Pai Jorge era pra um e com [Pai Euclides] eu aprendi pra quem que se canta, a que se refere aquele cântico, pra que serve naquele momento, né? É, eu faço uma balança, vestimenta, modelo de rosário, eu faço uma balança das duas casas. JL: Foram dois pais de santo que foram muito importantes em São Luís. Renovaram muito a Mina. Então, o que é que acha que é mais importante numa casa e mais importante na outra casa? PW: Olha! O Pai Jorge, a inovação foi de tirar o Tambor de Mina do próprio terreiro e ir pra uma praça, né? Mostrar a religiosidade de uma maneira também que ela pode viver em outros ambientes, de ir arrumado [com a vestimenta de santo] pra um seminário, pra um congresso dar uma palestra, ir pra uma faculdade ministrar outro tipo de palestra. Registrar uma festa, pra mandar filmar, pra estar na mídia. Então, Pai Jorge, ele foi esse sacerdote do momento, da mídia, né? Ele era bem respeitado pela sociedade ludovicense. O Pai Euclides não, se manteve numa tradição, a questão de não sair por aí arrumado, com rosário, que não faz parte de uma tradição. Os cânticos, tinha a hora certa pra cantar, não se canta em qualquer ambiente, e assim. Mas tinha muita coisa parecida [com] um [e] com o outro. [Pai Euclides] valorizava mais essa questão interna do próprio Tambor de Mina, [do que] foi passado. O Pai Jorge não, já externizava, já botava pra fora mais um pouco, né? Tinha aquela questão de deixar a coisa inovar, um bolo confeitado que o encantado repartia. Na casa de Pai Euclides não tem, tá entendendo? Um barracão enfeitado de balões, como se fosse aniversário de 15 anos, na casa de Pai Euclides já não tem, tá entendendo? Esses tipos de coisas… Então, a diferença da casa do Pai Euclides pra do Pai Jorge, acho que é a questão do próprio sacerdócio em si. Porque hoje, atualmente, eu estou nas duas casas, eu participei de uma e atualmente na outra, se bem que na casa de Pai Euclides eu não tenho uma vivência cotidiana, mas eu tenho uma visão muito boa perante essa questão e vejo que as duas casas são modelos realmente de uma tradição. Pai Jorge externizava essa questão toda, né? Ele fazia festa, tudo era festa, ele era um homem muito festivo, um toque de tambor dele de encantaria tinha bebidas, ele servia convidados, bolo, aquela coisa que não era típico de uma tradição. Ele inovou na vestimenta de brilho, paetês, lantejoulas, turbante. Até mesmo teve um filho de santo chamado Francelino [de Xapanã], que veio de São Paulo e trouxe essa questão toda também. O Pai Euclides foi fazer também uma obrigação de Candomblé e readaptou na casa dele, [mas] é uma coisa que eu não tenho conhecimento, eu não posso falar do Candomblé na casa dele. Então assim, são duas peças fundamentais no Tambor de Mina. Pai Jorge foi embora, mas deixou esse nome todo, onde eu aprendi, onde eu caminhei, né? Engatinhei, pude ter uma vivência. Tive [depois] a sorte de cair na casa Fanti Ashanti, onde Pai Euclides me amparou, me abraçou, me adotou, né? Que eu me sinto filho também dele, acho que até mais filho do que os próprios filhos dele, me sinto muito honrado perante ele e agradeço muito os dois, o iniciador e meu atual [pai de santo], porque ele sempre me orienta, minhas orientações espirituais é através dele, né? Tive a honra de há dois anos atrás ele ter assentado minha casa, plantou um novo axé, um novo fundamento na minha casa, renovou toda a questão. Tanto que eu tenho uma placa lá fora em homenagem a ele e também homenageando meu iniciador que foi o Pai Jorge, porque sem Pai Jorge também eu não estaria aqui com esse terreiro, porque Iemanjá me deu esse equilíbrio, me deu essa dinâmica. |
«Aí, isso nos meados de 2004, em setembro, uma entidade chamada Menina do Maracujá em cima de mim, pede pra confecionar os abatá, os tambores e tocou tambor dia de Cosme e Damião aqui, distribuindo bombom e bolo, pronto! Disse que a partir daquele dia o terreiro já estava aberto de uma certa forma.»
JL: Eu gostaria agora de perguntar sobre outros aspetos da sua vida: a escola, o curso, a profissão, outros aspetos da sua infância e juventude…
PW: Então, a minha infância assim, foi uma infância um pouco precoce. Estudava, namorava, normal, as meninas sempre ali (risos), nas brincadeiras, aquela coisa toda. Estudei no colégio Instituto São Lázaro até o primeiro ano básico, foi quando meu pai soube dessa minha questão religiosa, foi quando eu saí de casa, né? Porque a gente teve essa briga e eu tinha que sair de casa. Fui morar com minha ex-mulher, escondido da mãe, né? Passei duas semanas dormindo debaixo da cama [dela], pra quando a mãe entrava no quarto ela não me olhar. [Mas] ela percebeu, porque toda vez que eu ia namorar era o mesmo calção e a mesma camisa, aí ela perguntou pra filha: “poxa! Esse teu namorado só vem nesse horário certinho, só sai daqui meia noite, não é arriscado pra ele?” E ela percebeu que era sempre o mesmo calção e aquela camisa e o café da casa dela que acabava rápido. Detalhe: a filha não tomava café e eu gostava muito de tomar café… Aí, certo dia ela entrou no quarto e perguntou pra filha o quê que estava acontecendo com ela? Porque a mercearia da casa dela estava acabando rápido e que ela tinha ido no colégio e ela tinha bastante falta, estava com um mês com muita falta e queria conversar comigo, porque eu saía muito tarde, se eu tinha algum problema com a minha família, porque era arriscado a hora que eu saía, se meu pai falava, se não falava. Foi quando a minha ex-mulher conversou com ela, “não mamãe, porque Wender está com uns problemas e tudo, ele tem esse negócio de encantado”. E como a mãe dela já frequentava uma casa como promessa da própria filha… Porque quando ela se separou, ela foi e fez uma promessa pra Cosme e Damião pra filha terminar os estudos. Então, a mãe dela já tinha uma noção dessa coisa de religiosidade. Foi quando a mãe dela vai e diz assim: “então manda ele sair debaixo da cama”. Aí foi quando eu saí debaixo da cama (risos) e ela disse: “olha! A partir de hoje a gente vai conversar, quero saber o que está acontecendo”. Foi aí que eu abri o jogo. Ela: “olha! Eu vou te apoiar, mas eu não sei como é que vai ser essa história de tu morar aqui com a minha filha, não sei se tu gosta dela, isso é uma grande responsabilidade, né? Porque ela ainda é de menor, tu também é de menor e eu tenho que conversar com alguém da tua família”. Foi quando eu falei com meu irmão Sérgio, esse que me apoiou, e ele conversou com ela, né? Aí eu comecei a morar na casa dela. Então, essa senhora chamada Sueli sempre me deu apoio. Ela pagou meu estudo, fez eu [frequentar meu curso] de técnico de enfermagem, foi quando ela conseguiu meus estágios. Aí, eu comecei a trabalhar como técnico de enfermagem no Hospital Aliança, trabalhei na UTI do Aliança. Logo após eu fiz instrumentação neuro-cirúrgica, consegui emprego numa empresa. Coincidentemente ou não, meu irmão mais velho já era um dos instrumentadores chefe dessa empresa, né? Essa Dona Sueli sempre me apoiou, então ela me tem como se fosse filho, eu tenho ela como mãe. [Mais tarde] ela vendeu esse apartamento dela, onde ela morava, pra ajudar a fazer a minha iniciação, eu tive uma ajuda financeira, ela também veio morar pra Liberdade, pra estar mais próxima do terreiro, né? Foi a pessoa que me apoiou junto com a filha perante essa questão toda da minha religião e até hoje ela mora comigo, eu sou separado da filha dela e ela me tem como filho, a gente mora junto, né? A gente tem essa amizade toda entre mãe e filho. Então lá atrás na minha vida espiritual, na minha infância mesmo, eu sempre fui um tipo de jovem atento, pelos riscos que a própria juventude trazia, droga, bebida, esses tipos de questões. Então, a religião, ela me resgatou de uma certa forma, por que eu vivia praticamente solto. O terreiro, ele me conduziu. Os orixás, os encantados me conduziram a esse caminho sacerdotal. Isso gerou toda uma polêmica naquele bairro naquela época, porque achavam, como eu era muito solto, que eu traficava, que eu me drogava. Mas na verdade, quando eu saía na noite era pra ir pra tambor, quando eu me arrumava era pra estar em outro tambor, em outra casa, pouco eu vivi em boate, pouco eu vivi em festa, em praça, namorava muito (risos), mas não era muito assim de festa, minhas coisas era mais pra terreiro. JL: E hoje, como é que está sua vida profissional? PW: Atualmente eu sou sócio do meu irmão numa empresa de instrumentação neuro-cirúrgica, que é a SINC (Serviço de Instrumentação Neuro-Cirúrgica), a gente presta serviço pra três neuro-cirurgiões aqui em São Luís, em alguns principais hospitais, tanto da prefeitura quanto do estado, a gente tem contratos. E sou graduando em psicologia. [Antes] fui graduando em enfermagem, cheguei até o sexto período, mas desisti pela questão de emprego, pela dificuldade de fazer um curso superior e não ter uma perspetiva de vida boa e também [porque] não dava pra conciliar com a minha religiosidade. O percurso de psicologia foi até engraçado. Na verdade eu me encantei, por [conta de] uma aula que eu tive com uma professora chamada Iara. Dentro dessa aula eu me encontrei de uma certa forma e perguntei pra uma filha de santo minha chamada Cláudia, que atualmente é guia na minha casa: “Cláudia, eu estou em dúvida, eu quero trocar meu curso, eu estou entre fisioterapia, fonoaudiologia, odonto e psicologia, eu não sei o quê que eu faço, quero fazer alguma coisa dessa aí, vê se tu fala com um encantado pra ver se ele dá uma luz”. Passou umas duas semanas, eu comecei a me confrontar com alguns problemas de pessoas da casa, problemas, assim, psicológicos. Daí eu usava aquele senso comum de querer orientar, de escutar, de estar achando uma maneira mais fácil daquele problema ser resolvido. Aí ela vai e me diz: “pai de santo, poxa! O senhor faz a coisa acontecer de uma certa forma, se eu fosse o senhor eu fazia psicologia, o senhor se dá com gente todo o tempo, com problemas, se confronta às vezes com suas próprias questões de vida, com outras pessoas, usa o senso comum, né? Se eu fosse o senhor eu me aprofundava, fazia um curso superior, trabalhava com a psicologia e também aproveitava ela dentro da nossa religiosidade, pra ajudar outras pessoas”. E assim eu parei e pensei: “certo”! Aí eu pedi um recado pra minha ex-sogra, ela diz que seria bom sim, mas que eu ia chegar em certos momentos e eu ia me confrontar com algumas questões, principalmente quando se falasse de transe. Em psicologia, me confrontei já com algumas teorias, né? E pretendo me formar e seguir como psicólogo e separar a religiosidade, o sacerdote Wender, e o critério profissional como psicólogo, né? Não misturar coisas que não tem nada a ver: religião é uma coisa e a ciência da psicologia é outra. JL: Muitas vezes as pessoas que vêm aqui no terreiro vêm pedir também algum tipo de conselho, de conforto. E aí a psicologia pode ser útil, talvez? PW: Certo, mas o quê que eu faço? Como eu sou estudante ainda no momento, quando eu vejo que aquela pessoa, ela não tem nada espiritual e assim, ela está precisando de uma palavra ou de conforto, às vezes eu dou. Mas quando é uma questão que ela tem que fazer um tipo de terapia, tem que passar por um outro tipo de processo com o psicólogo, eu peço pra ela procurar fazer uma terapia, às vezes eu dou nomes, números de psicólogos que eu conheço, de professores, né? Às vezes [os problemas das] pessoas não é espiritual e sim psicológico e eu acabo dando [esses contatos]. Eu não faço atendimento. JL: Como é que é possível diferenciar o que é psicológico do que é espiritual? PW: Olha! O espiritual eu diferencio mesmo pela questão da própria essência, a gente que é espiritualista, a gente sente a coisa quando é espiritual, a gente tem um tipo de sensibilidade que confronta nosso próprio eu espiritual, né? E a questão psicológica, enquanto estudante, eu não sei formatar tudo na informação nesse momento, ainda estou em processo de aprendizado. Então, eu prefiro errar no sentido de dizer que aquilo não é espiritual, pode ser psicológico, do que tratar uma coisa que não é espiritual e dizer que é psicológico ou tratar psicológico e dizer que é espiritual. Sempre pergunto se já fez exame, já procurou um neurologista. [Por exemplo] “Ah! Eu estou com meu corpo cheio de coceira”. Aí eu pergunto: “procurou um médico clínico geral, um dermatologista, tomou remédio, tomou antibiótico?” JL: Segundo a psiquistaria ocidental existe a esquizofrenia, que se manifesta, por exemplo, no fato das pessoas ouvirem vozes, né? Qual é o critério que permite dizer “isso é uma doença” ou então não “isso é espiritual, não são vozes, é um encantado”? PW: Olha! Eu como estudante de psicologia, lógico eu não vou diagnosticar, porque como aluno eu não posso fazer isso, né? Mas isso ia me antenar pra conduzir aquela pessoa primeiro a um processo de procurar um psicólogo? Pra fazer um tipo de tratamento, ele ver isso aí, pra depois vim aqui pra saber se isso foi, se não foi, se é, se não é psicológico, pra poder tratar, se é espiritual. Mas quando é espiritual, sempre vem direcionada a questão do encantamento, do transe. JL: Algumas teorias psicológicas tentam explicar o que se passa no transe, né? S.W: Olha! No momento, eu vou tornar-lhe dizer (risos): eu sou estudante, ainda estou dando esses tipos de teorias, então, eu não posso ter uma conclusão total sobre essa questão toda. Mas que é interessante é que eu me confronto com algumas teorias. Umas teorias falam isso, outros falam isso, são várias. A psicologia é feita em cima de várias teorias, humanista, psicanálise, behaviorismo. [Mas] nesse momento não tem como eu dizer qual é o direcionamento a tomar perante essa questão. Assim, no meu entendimento, eu vou querer separar muito bem o meu lado profissional enquanto psicólogo e enquanto sacerdote Eu não vou dentro do terreiro fazer consulta psicológica, de jeito nenhum, tá? Não tem nem como, né? E [também] lá no meu consultório [não vou] dizer que alguma coisa é espiritual. No dia que eu me confrontar com alguma situação dessa, eu passo a demanda pra outro sacerdote fazer o tratamento. Vou separar as duas coisas, não vou poder misturar. Se eu me confrontar no lado psicológico e achar que é espiritual eu dou para outro psicólogo tomar a demanda, que eu já estou-me confundindo com o sacerdote. JL: Mas a psicologia deve ser útil pra entender melhor um pouco as pessoas, os problemas delas, muitas pessoas chegam aqui com problemas psicológicos. A psicologia tem sido interessante pró seu trabalho aqui no terreiro? PW: Pra mim ter assim um olhar diferenciado, não levar tudo para o espiritual, né? Que às vezes nem tudo é espiritual. [Mas tem que] separar. Às vezes dá pra mim distinguir que aquela pessoa ali, ela acha que aquilo ali é espiritual ou aquilo ali não é espiritual, então dá pra trabalhar, “Olha! Não, não estou entendendo nada, aqui não tem mesmo, procura outro ambiente, outro terreiro, outra casa, vai pra uma igreja, vai rezar, vai orar, vai fazer alguma coisa que tu possa te encontrar de uma certas forma”. Hoje dá pra mim saber sair dessa situação, né? Eu não tento em momento algum misturar nada, porque de uma certa forma a gente está-se dando com as vidas, né? São pessoas, elas vêm com uma fé, com uma crença, então, eu prefiro não brincar com o sentimento, com a fé daquela pessoa, eu procuro me isolar, dizer “Olha! Vai procurar outra pessoa, eu não tenho como tratar, eu estou um pouco atarefado”. Ou já indico alguém que realmente vai receber e vai ajudar com mais segurança. Eu procuro estar sempre ali antenado no que possa estar vindo das demandas que estão vindo pra mim enquanto religioso, né? [A Psicologia], não enquanto psicólogo, por que eu ainda estou em processo de formação, está me ajudando muito a entender até a rotina do povo que frequenta minha casa, os filhos de santo, olhar a comunidade de terreiro enquanto comunidade mesmo. Com as pessoas se relacionam, os conflitos. Dá pra mim interagir, fazer um tipo de trabalho social com o povo, tentar compreender e refletir pro outro o que ele quis dizer de uma certa forma. Então está dando pra poder dar um equilíbrio, na comunidade em si do terreiro, né? Sempre ajudando muito. A qualidade de liderança, a credibilidade enquanto sacerdote, né? Das pessoas poderem vim até onde eu estou, de poder pedir um tipo de conselho pra sua vida pessoal, de querer desabafar de uma certa forma. JL: O senhor faz parte de uma nova geração de sacerdotes jovens, né? Que, mesmo que não se deem conta, estão renovando a Mina e abrindo pra pessoas também jovens. Uma coisa que é interessante aqui no terreiro é que as pessoas são muito jovens. Mas são também muito misturados socialmente: tem tudo, tem graduado, pessoa que está fazendo doutorado, pessoa que trabalha de doméstica… Então, é um terreiro muito misturado socialmente, né? Mas as pessoas dão-se muito bem, como se não existisse essas diferenças, né? PW: Aqui dentro a gente não se confronta com isso, porque a gente tem a hierarquia, né? A hierarquia da própria religiosidade ela obriga, independente da sua classe econômica ou da sua graduação, você pode ser um médico, mas se você só tem três anos de iniciação, então você está abaixo daquele que é (Guarin) e que é um Vodum (Sarranjaí), que é um Orubatá antigo da casa. Você vai ter que manter respeito perante aquela pessoa. A diferença que faz quando esse grupo todo da sociedade está junto são as cabeças pensantes pela casa, são as pessoas que tem uma visão diferenciada da religiosidade e [isso] ajuda pra mostrar pra sociedade que o terreiro não é um lugar só de gueto, não é um lugar de palafitas, não é um lugar de pessoas de baixa renda, é um lugar de fé, onde tem toda a nata, seja o graduando, o não graduando, o que tem dinheiro, o que não tem dinheiro. É um lugar de espiritualidade, de elevar sua espiritualidade, de buscar o seu equilíbrio no mundo, está entendendo? Entre o céu e a terra tem muita coisa pra gente viver, tem a natureza. Somos grandes cultuadores dela de uma certa forma, né? Onde a gente pega nossas energias, vem dela. É o ar, é a água, é as árvores. Então, essa questão do povo que tem graduação e dos que não tem, é interessante pra [mostrar] lá fora que o terreiro não é essa questão pejorativa, né? Infelizmente, a metade dos terreiros estão nos lugares de palafitas, de baixa renda… JL: No passado tinha muito preconceito contra terreiro. E hoje? PW: Hoje também, o preconceito está aí. É por isso que muitos sacerdotes, inclusive eu, sou preocupado em me formar, ter uma formação, né? Pra chegar em um ambiente e não me apresentar só como sacerdote e sim como psicólogo, graduando, doutorado, doutorando, e [também] sacerdote de religião de matriz africana. JL: Digamos que o preconceito é menos forte hoje do que era antes... PW: É menos, mas ainda existe, e a gente mesmo de terreiro tem que tirar essa capa. O preconceito vem da gente se [fechar] dentro das nossas casas e não querer demonstrar a religião como religiosidade mesmo, né? Porque a religião de matriz africana tem todo um ensinamento, no vestir, no se comportar, respeitar as pessoas, respeitar o espaço que a gente vive… O espaço não é só o espaço religioso, mas a natureza em si. É como se fosse uma grande faculdade, [porque] a gente tem todo um ensinamento dentro do terreiro. Primeiro tentar mostrar pra sociedade que o terreiro, ele é um hospital de uma certa forma, certo? Ele é um consultório psicológico, ele é uma sala de aula de uma certa forma, ele é uma creche de uma certa forma, né? Na verdade, o terreiro tem um pouco de todo o tipo de questões [pra] que a gente possa viver na sociedade normal, o terreiro tem essa função. JL: Uma vez que estamos falando de preconceito, nesse seu processo de descoberta da sua religiosidade, teve sempre esse problema da família não aceitar bem isso, né? PW: Pra mim foi assim muito complicado, né? Porque se eu não tivesse a cabeça que eu tenho hoje, eu podia estar até traumatizado perante essa questão. Como eu disse, meu pai era muito carrancudo nessa história, ele achava que eu ia ser homossexual porque a sociedade diz que todo o religioso de terreiro é homossexual. Isso não é verdade, né? Os terreiros abre o leque, o espaço pra homossexualidade e pra outros tipos de questões sociais, [porque] não tem discriminação. O terreiro, ele agrega qualquer tipo de pessoa. Então a homossexualidade se encontra dentro do terreiro, não só homossexualidade como qualquer outro tipo de direcionamento social, não é? De marginais, de pessoas, filhos de putas e assim sucessivamente… Então, essa época pra mim foi muito ruim, porque eu fui muito taxado pelo meu pai, que achava que se eu dançasse tambor eu ia ser homossexual, ia botar o nome da família dele na lama, meus irmãos de uma certa forma me ignoravam, alguns amigos também rejeitavam. Quando falava de religião, sempre botavam o Tambor de Mina como macumba, como feitiçaria, até hoje ainda me confrontam também com esses tipos de questões pejorativas. Foi muito ruim pra mim esse critério, né? Então assim, eu sempre tentei trabalhar, pra mostrar pra minha família e para as pessoas ao meu redor, que a religião, ela não faz ninguém ser o que já tinha de berço ou dentro de si, ela só organiza a vida daquela pessoa de uma certa forma, né? A religião não faz ninguém ser o que é, a religião, ela organiza você a viver o que você é. Então, assim, foi o que eu comecei trabalhar nela, né? Respeito minha integridade de saber quem eu sou mesmo, o que eu queria da minha vida, de ir em busca de conhecimento. Interrogava meu pai de santo, interrogava outras pessoas, fazia algumas anotações, “aquele cântico, o que significa? É obrigado usar um turbante? Mas porquê o turbante? Aquela cor, aquela renda é enfeite ou é obrigado porque a entidade pediu”? Então, tudo isso eu fui começando a trabalhar e fui me adaptando dentro desse enredo que é a tradição, que é o Tambor de Mina em si e fui mostrando realmente o meu caráter enquanto jovem, enquanto brincalhão, meu lado sacerdotal, meu lado religioso pros demais. Tanto que hoje, dentro da minha casa aqui, do meu terreiro, eu tenho três tipos de grupos que frequentam: os que vem em busca de algo religioso, os meus amigos de infância, de faculdade, de serviço, que vem olhar um tambor, que vem compartilhar de um alimento, que vem conversar com uma entidade porque gosta dela, quer escutar uma palavra de conforto ou outros vem pra me olhar, pra apertar a mão que nunca mais tinha olhado, é um momento que a gente pode bater um papo rápido, se rever, se encontrar. Então, o terreiro acaba sendo um ambiente tanto religioso como um ambiente de encontro com demais pessoas da sociedade. Então assim, pra mim hoje, a discriminação do que eu passei só foi ensinamento, hoje meu pai frequenta a minha casa, [é] um dos meus melhores amigos dentro da questão religiosa. Foi quem me deu conselho na época que Pai Jorge morreu, que era pra eu me afastar lá do terreiro, por que ele escutava essa polêmicas todas, né? Então ele pediu assim: “rapaz, olha esse barco bem aí”, ele apontou pra casa, “esse barco é de Iemanjá, ele vai flutuar aí numa boa e nunca vai afundar porque ele é de Iemanjá. Agora eu vou te dizer uma coisa, tu pega tua canoa e começa a remar, porque tu remando tua canoa tu sabe pra onde tu ir e aí tu não vai saber não, porque cada um vai querer ir pra um lado”. E aquilo ali casou com o momento que eu estava passando, né? E eu fui refletindo e vi mesmo que era isso. Então, depois desses dois, três anos que eu abri o terreiro, meu pai começou a escutar as coisas repercutirem de uma certa forma: a integridade do filho dele ter um terreiro, era um terreiro de respeito, de jovens, não tem essa bebida toda, acaba o tambor é uma seriedade, o pessoal da rua toda frequenta, já frequenta o pessoal da sociedade que tem um nível mais superior financeiramente. Então ele se interessou e começou a se aproximar, até chegar hoje, que meus sobrinhos frequentam a minha casa, meus irmãos frequentam aqui, meu pai ajuda, as vezes é financeira, as vezes é braçal, às vezes é querendo dar uma palavra de conforto e de incentivo. Então assim [é] como se hoje eu fosse um mentor. Tudo que acontece primeiro eles vêm até onde eu estou, perguntam se pode, se não pode, o que eu acho e eu sendo o caçula, eu acabo dando referências na vida deles de certa forma. Eles vivem a vida, enquanto eu sou o burro de carga da família espiritual. Acontece alguma coisa, correm pra Wender, acontece uma coisa, fala com Wender, acontece alguma coisa. Eles retribuem dessa maneira, de estarem presentes, as vezes financeiramente, as vezes dando uma logística. JL: Agora pra festa do Divino, eles vão ajudar? PW: Tem, tem, minha família toda, meu mastro vai sair da casa do meu pai, né? O meu irmão parte de pai, o que mais me apoiou, ele é que vai fazer toda a receção do mastro, critério de som, de bebida, a minha sobrinha é imperatriz. Tenho um irmão que é evangélico, que frequenta, não espiritualmente, mas sempre apoia pela festa, sempre está aqui ajudando, ele vem ajeitar uma coisa, participa não diretamente, mas indiretamente, ele sempre dá uma contribuição, seja em logística ou de incentivo, né? JL: Voltando atrás, na parte do começo da religiosidade, ficou alguma coisa, quer acrescentar alguma coisa? PW: Chegou num momento da minha iniciação que eu conversei com Pai Jorge, eu disse: “Pai Jorge, eu vou me iniciar, mas eu queria um sigilo”. Até mesmo porque eu não queria que papai soubesse. “Como eu ainda não trabalho, mesmo não morando lá, eu queria que o senhor fizesse tudo isso, mas que eu só pudesse dançar meu tambor mesmo, encarasse essa questão toda da sociedade quando eu tivesse um emprego”. “Não meu filho, tudo bem”. Me deu a nota, tudo e tal, recolhi, eu saí em ritual interno, dia 10 de junho. Como na nossa obrigação a gente tem um objeto litúrgico chamado (Cocrê) ou (Kerrê) dentro do Candomblé, é como se fosse a gravata do vodum. Então, a gente passa tanto período com aquela gravata, com aquele rosário preso como se fosse uma aliança, um casamento com o vodum ou o umbigo direcionado ao nascimento do vodum… E ali a gente não tem livre arbítrio pra nada: o que o sacerdote disser, é. Se ele mandar botar tua cara no chão, tem que botar, se ele te mandar se sentar, tinha que sentar. Não come, não bebe, né? Então, 10 de junho eu saí no ritual interno. Aí eu: “ufa! Ainda bem, a minha conversa com Pai Jorge está saindo certinho”. Quando foi dia 16 de junho, dia de Nossa Senhora do Carmo, coincidência ou não, era aniversário do meu pai, vai Pai Jorge e diz: “Guiga, tu vai dançar tambor hoje”, eu disse “não Pai Jorge, até pelo amor de Deus, o senhor não faz isso comigo, a gente tinha um trato”. Ele, “você não tem o que dizer que sim ou que não, você está de preceito, você vai se organizar hoje, eu vou ligar pra sua mulher pra trazer sua roupa e tudo, que você vai dançar tambor hoje”. Aí eu disse, “ai meu Deus e agora, eu estou ferrado”, mas como eu já estava com o quelê, eu disse, é, “seja o que Deus quiser”. Aí eu vou e falo pra ele: “Pai Jorge, eu posso mandar ligar pra minha minha esposa”? Aí eu liguei pra ela “Aline! Traz o CD aí de Roberto Carlos, que eu quero presentear papai, eu vou lá hoje conversar com ele, já está com três pra quatro meses que eu saí de casa e eu vou lá entregar um presente e pedir perdão pra ver se ele me perdoa, tudo e tal, que eu não estou fazendo nada demais, só estou seguindo a minha vida”. E assim, eu saí dez horas da manhã da casa de Pai Jorge e digo “Pai Jorge! Eu vou lá, benção”. Ele: “vai com Deus, tudo vai dar certo, não te preocupa, Jurandir, ele é bravo, mas ele vai te receber”. Eu bato na porta, quando ele atende a campainha, ele diz assim mesmo: “pois não!”. “Meu pai, eu vim tomar a benção, vim trazer esse presente pelo seu aniversário”. Ele diz: “não lhe conheço rapaz, eu não tenho filho dentro dessa história”. E u disse “senhor, pare com isso, vim lhe entregar o presente aqui e tudo”, ele “vai-te embora da minha porta, eu não te conheço”, fechou a porta e entrou. Aí eu vim, chorando e tal, eu disse pra Pai Jorge que ele tinha-me tratado mal e tudo e que eu não voltava mais, chorei, chorei, chorei, aquela coisa toda, sentimento de filho, né? Cheguei pra o meu vodum, me ajoelhei e disse assim: “meu Pai Xangô, o senhor também é meu pai, eu só vou lhe pedir uma coisa, perdoe o meu pai pelo que ele fez, ele não fez de maldade, eu tenho certeza, eu só quero que o senhor dê saúde, virtude na vida dele, como o senhor é o orixá da justiça, eu não quero que o senhor julgue ele pelo que ele fez, por que ele não me julgou, por que eu estou preso no senhor aqui nesse momento, mas perdoe ele por tudo, eu amo ele, quero que o senhor não faça nada espiritualmente na vida dele que não seja maravilhoso”. Aí eu me recolhi, disse: “ah! Vou dançar e pronto”. Aí, deu umas seis horas, ele passa, aperta a buzina do carro e manda-me chamar e eu já não podia sair porque já estava no sereno. Pai Jorge: “não, bota um chapéu e vai lá rapidinho saber o quê que ele quer”. Aí ele vai e diz assim pra mim: “rapaz! Entra nesse carro aqui e larga isso aí, vem, entra aqui que eu estou-me encontrando agora com teus irmãos, com as tuas cunhadas, pra gente comemorar meu aniversário como pessoas normais, entra e larga isso aí rapaz, isso não é vida pra ti, tu não está vendo?”. Aí eu viro e digo assim: “Quem é o senhor? Eu não lhe conheço, segue o seu caminho”. Aí voltei, entrei para o terreiro, passou, aí teve a hora do tambor. Quando eu entro no salão, Pai Jorge cantando pra cerimônia, tudo lotado, as janelas lotadas de amigos de infância, de colegas, ex-namoradas tudo comentando, sussurros, risadas, críticas, tudo ali veio à tona com aquilo ali. Eu me lembro muito bem que quando me deram o primeiro giro no barracão, eu me deparo com minha ex-mulher, a minha ex-sogra e meu irmão de criação, as únicas três pessoas da minha família, que eu considerei na época da minha família. E aquilo me emocionou de uma certa forma, ainda fiquei um pouco… Foi quando eu virei no santo, pronto! No outro dia amanheci bem e comecei a trilhar meu caminho, sem vergonha mesmo, já de cabeça erguida e esse encantado chamado Cravinho conquistou meus amigos de infância daquela rua, ele falava uma coisa aqui, descobria uma coisa de fulano ali e começou a ganhar presente de beltrano aqui, começou a entrar na casa dos vizinhos da rua, os vizinhos já queriam a presença dele, os tambores da casa de Pai Jorge enchia de gente pra conversar com ele, pra levar um presente, pra levar um perfume, pra levar um cigarro e ali eu fui conquistando aquela minha comunidade, onde eu nasci e fui criado, até chegar esses sussurros no ouvido do meu pai: “ah! Teu filho tem encantado mesmo, olha! teu filho tem essas coisas, rapaz, olha! É digno, não sei o quê, tal e tal”. Foi quando Pai Jorge morreu. [Depois] foi esse processo todo que eu contei, até chegar no meu terreiro, onde eu tive a satisfação de ter o apoio dele após a morte de Pai Jorge, né? O apoio dos meus irmãos, eles olharam que eu estava realmente determinado a comandar uma casa, uma situação toda. Foi quando eu ajudei um ou dois irmãos e depois meu pai pediu um certo tipo de ajuda. Também foi gratificado dessa ajuda espiritual e comecei a ter esse respeito deles e essa confiança da minha família, espiritualmente. |