Dançantes e Abatazeiros
Entrevista com Júnior
Dançante da Casa
Maio 2014
Júnior (JU): Sou Armindo Júnior, sou professor né? Tenho trinta e dois anos, solteiro, não tenho filho e minha vida é trabalho, estudos e a minha religião. Sou Paraense, natural do Belém do Pará, mas tenho muita experiência, já morei em outros estados, no Rio de Janeiro, já morei em São Paulo, Manaus e meu Vodum me trouxe para cá, para São Luís do Maranhão para aperfeiçoar a minha religiosidade e a minha espiritualidade. Sou graduado em Ciências da Religião e sou graduado também em Filosofia e trabalho em duas Faculdades e três escolas de ensino médio.
João Leal (JL): Como é que começou a sua a sua vida religiosa? JU: A minha avó, ela já tinha terreiro aberto em Belém do Pará e eu nasci e me criei dentro do terreiro, só que era um terreiro de Umbanda, né? E esse terreiro me fez reflectir numa série de coisas e acredito que a minha vocação religiosa é uma herança da minha avó, né? A minha avó ainda é viva, mas, assim, ela fechou o terreiro e ela não trabalha ,mais por estar debilitada né? É uma senhora de idade e na minha família sou o único que continuou nas religiões de matriz africana...Tive experiência também dentro da religião católica, próprias da juventude, grupo de jovens, mas a vocação ela nasce e assim não tem como a gente fugir, não tem como fugir, é uma missão mesmo viver para os Orixás. JL: E a relação mais forte com a religião de matriz afro começou quando? JU: Há quatro anos eu conheci uma pessoa que me levou para eu poder me tratar, até porque eu já sentia, desde criança sempre sentia... Semore tive problemas em relação à minha espiritualidade. É, eu sentia energias né? Ás vezes eu passava mal e de 2007 até 2008 eu trabalhei na educação indígena e lá, dentro da mata eu passava mal e não não sabia como tratar. Até porque já tinha experiência de terreiro, mas não sabia como tratar, o que fazer e estando dentro da aldeia índigena eu sentia que tinha a energia da mata, aquela energia da floresta me fazia muito pra virar. Hoje eu entendo o que naquela época aconteceu comigo, e eu fui para um terreiro de Umbanda mas não consegui me tratar lá, eu apenas conheci o terreiro mas não fiquei e aí fiquei procurando uma casa em Belém do Pará que pudesse me ajudar, dentro desse meu problema. Eu estava me tratando na época né? Foi quando um amigo meu me indicou o Pai Wender, daqui de São Luís do Maranhão e eu vim. Na verdade ele me falou do Pai Wender que era filho de Pai Euclides e o Pai Euclides tem assim um nome muito conhecido dentro de todo o Brazil, inclusivé em Belém e eu vim para conhecer o Pai Euclides, só que quando cheguei aqui as coisas foram virando, meu Vodum sempre me puxou e é assim o meu Vodum me trouxe pra cá. Porque eu não vinha com ideias de vir pra cá pra… Eu tinha ideia de ir pra uma casa, pra qualquer uma outra casa, mas eu não tinha essa ideia né? E, em 2013, o ano passado, eu entrei prá casa e fui conhecendo a casa, tive experiências nas festas, nos momentos internos né, e aqui estou há um ano, aqui dentro da casa né, já sou Vodunço, já fiz minha primeira abertura, já fiz o meu primeiro Santo. Meu senhor, meu primeiro Vodum aqui em casa é Toi Lé que é um Vodum da Mina de Oxóssi, sou filho de Oxóssi. Depois que eu fiz o meu senhor, depois que eu fiz o meu santo, eu tive assim já muitas graças sabe? Consegui prosperar numa série de coisas, numa série de elementos que a minha vida assim deu uma fortaleza maior, senti a força dessa casa, a força da experiência e religiosidade afro e isso, é assim, me fez me tornar uma pessoa feliz, até lá então tinha dúvidas da minha religiosidade. Será que realmente era isso que eu queria? E hoje, após a experiência de pedir o santo, eu posso perceber, ter certeza em que pacto eu nasci, meu pai é Oxóssi, sou criado numa casa de Xangô pra fazer justiça e hoje sou feliz e grato por isso. JL: Mas lá em Belém já tinha algum contacto com a Mina? JU: Fui em vários Terreiros no Pará, mas é assim, a ideia de Tambor de Mina lá destoa do que o Tambor é aqui em São Luís do Maranhão. Pelo menos as casas onde eu conheci. Mas tem toda uma referência, um conhecimento uma experiência comum de tradição que são autênticos ao Tambor de Mina genuíno aqui de São Luís do Maranhão. É coisa que eu não encontrei no Pará. No Pará a gente vê mui0to casa de Tambor de Mina, mas que não têm assim um fundamento de Tambor de Mina, entendeu? Então houve muito essa dificuldade em relação à minha pessoa dentro de Belém do Pará, não consegui ficar em casa nenhuma, não encontrei uma casa que pudesse dizer, aqui dá pra dar continuidade, dá pra eu ir fazer meus remédios, dar continuidade à minha religiosidade, não encontrei essa casa. Encontrei aqui em São Luís do Maranhão. JL: Lá a Mina está mais cruzada com o Umbanda, é isso? JU: Acredito que é assim, algumas casas são de Umbanda, mas se autodenominam Tambor de Mina, outras são Tambor de Mina mas criam uma certa mesclagem com Candomblé. Pega certos elementos do Candomblé joga no que eles denominam de Tambor de Mina e aí cria toda aquela salada. Quando vim para São Luís do Maranhão não vi isso, né? Pai Euclides, na minha opinião ele retrata muito bem o que é o Tambor de Mina né? E eu nunca vi isso nas casa de Tambor de Mina do Pará e aí eu procurei realmente vir pra São Luís e conhecer o que era realmente, na sua essência, o que era realmente Tambor de Mina e eu vi que tinha muita diferença. Até as casas que eu conheci dentro do Belém do Pará que são descendentes das casa daqui de São Luís do Maranhão eu vi muita diferença entendeu? E aqui, assim com o Pai Wender, que é um sacerdote jovem, mas de muito muito fundamento, eu consegui entender, consegui aprofundar o meu conhecimento com relação ao Tambor de Mina. Acredito que de uma praia um grão de areia me trouxe para o Tambor de Mina, mas esse grão de areia é muito intenso, muito forte e me dá o impulso pra que eu possa conhecer ainda mais aqui em São Luís do Maranhão JL: Disse que conheceu o Pai Wender, primeira vez, em dois mil e sete, é isso? JU: Não não, em dois mil e sete eu conheci as casas de Tambor de Mina. Conheci o Pai Wender o ano passado. JL: A familia, amigos, conhecidos, aceitam bem a sua escolha, ou há preconceito? JU: Não, graças a deus tenho sorte, sou muito bem resolvido em termos espirituais. Fui católico apostólico romano a minha juventude, depois que a minha avó fechou o terreiro, a minha família que participava do terreiro se encaminhou dentro da igreja católica no bairro lá da nossa comunidade e a minha vida religiosa foi mais católica só que... [Tinha] ideias mesmo que a igreja católica tinha que eu particularmente não aceitava e, a minha família hoje, todos eles são católicos, somente eu sou afro-religioso, assumido. Todo o mundo sabe, e a matriarca da família, que é a minha avó, que ainda é viva, ela é católica, é na verdade umbandista, é uma mesclagem... Porque ela reza pra a Nossa Senhora, prá encantada dela, ela pede e agradece, então há esse sincretismo por parte da minha avó e por isso há esse respeito com relação à minha religião. Eu não sinto dificuldade, trabalho, sou professor do ensino religioso e, é assim, [falo de] todas as religiões só que claro que tento esclarecer com a sociedade que Tambor de Mina e afro-religiosidade não é uma religião negativa, não é uma religião que fala de mal, não é uma religião que vai trazer sofrimento, é uma religião como todas as outras, que tem seus pontos positivos e seus pontos negativos. JL: Que encantados recebe? JU: Eu recebo o Ogum que é Toi Lé, que é uma qualidade de Oxóssi. Encantados, eu recebo Seu Toni de Légua, Cabocla Mariana, Seu Sete Flechas e alguns outros encantados que vem na linha de cura. [Recebo também] Seu Ricardinho de Oliveira [que] é um Gentil, que ele é da família de Dom Sebastião, é encantado na Praia do Rei Sol. JL: Fale-me um pouco sobre os seus encantados... JU: É assim, isso tem muito fundamento. Então o Oxóssi, ele é um caçador jovem, mas que é sério, apesar de ser muito jovem é sério, e traz na sua essência, aquilo que eu peço pra ele, que eu peço em orações, né? [Tem também] esse meu caboclo [que] é Dona Mariana, que é o primeiro encantado que veio em mim, talvez Dona Mariana tenha sido mesmo a primeira encantada que baixou em mim, uma encantada que traz alegria. Lá em Belém trabalho em linha de cura com ela e obtenho muitos resultados, eu fico assim impressionado, às vezes a gente não entende, mas a gente é instrumento dos encantados, eles usam a nossa matéria, pra fazer bons feitos, prá sociedade e prás pessoas que os procuram. [Também tem] Sete Flechas e Seu António de Légua e Seu Manuelzinho de Légua. O Seu Sete Flechas já é um guerreiro, um índio né? Ele está dentro já do Tambor de Mina, ele vinha quando eu frequentava o umbamda, mas assim com pouca frequência, mas agora vem com mais frequência. Seu António de Légua que é um Codoense, ele é muito brincalhão, ele já é mais assim solto, da família dos Codoenses, eles já são mais animados, então Seu António ele vem em cima de mim assim mais pra brincar, para conversar e é muito de dialogar, conversar com as pessoas, ele é muito de estar ajudando as pessoas, procura sempre estar atento ao que está acontecendo e é muito de estar observando as coisas né? E a coisa do Seu António é que, apesar de ele estar aqui brincando, ele sabe o que é que está acontecendo ali, ele sabe, então sempre está ligado e ele atende sempre a todos, a tudo e a todos. Isso e D. Manuelzinho, porque ele toma conta da casa, já tem um filho e então ele se afastou um pouco, mas ele vem por conta da minha coroa, é um encantado também alegre, animado...bem mais animado assim de brincar, de dar gargalhadas, contar piada, né? Seu Manelzinho, ele é um encantado também de muito fundamento, de ensinar pras pessoas. E é isso aí, os encantados que vêm em cima de mim, eles são mais ou menos assim. JL: O ritual, na sua casa, como é? JU: Eu faço a chamada toda na Quinta Feira, então toda a Quinta Feira eu faço a chamada dos encantados na minha casa, na minha sala, onde não tem fundamento assentado, não é barracão, é apenas uma sala onde eu faço minhas orações, onde eu faço meus pedidos, onde faço minhas chamadas, então quando, de repente alguém no dia-a-dia e aí pergunta e pede conselhos eu digo, vai essa Quinta Feira lá em casa e aí eu lhe espero. JL: Aí, por exemplo, num toque para caboclos esse encantados baixam todos? Como é que é? JU: No caso de seu Ricardinho, ele só vem uma vez no ano, pelo menos até então, sou recente aqui na casa e ele só vem para a dia de S. Sebastião. Ali naquele dia, tem um horário, mais ou menos, entre as dez e onze horas que ele sempre, todo o ano ele vem, né? Fica um pouco e depois vai embora. A minha princesa é D. Jaína [da família de Rei Sebastião]. Ela já vem com mais frequência, se não vier minha Senhora, vem ela, minha Princesa, D. Jaína. Ela é muito séria, calma, não é de muita brincadeira, mas ela é meiga, apesar de ser séria ela é bem meiga sabe? Ela não é de muita grosseria, ela é séria, ela não é de tirar brincadeira como os outros encantados JL: A sua princesa usa bonecas? JU: A minha princesa, ela não usa boneca não, ainda não. Pode ser que um dia ela pegue uma boneca por algum fundamento né? Mas até então ela não usa boneca, usa um leque. JL: Então ela é da família de Rei Sebastião. Qual é a relação entre o Rei Sebastião, São Sebastião... JU: Aí é uma nova discussão, né? É assim, eu trabalho em Belém do Pará, mas eu trabalho também numa cidade onde tem uma encantaria de S. Sebastião. Em São João de Pirabas, lá tem uma pedra e dizem lá, segundo a lenda, que a pedra está encantada em Dom Sebastião, então a gente leva uma série de presentes, oferendas. De lá não pode se tirar nada, pois se tirar acontece alguma coisa com a pessoa e tem muitas histórias, muitas histórias interessantes com relação ao Sebastião. O nome da praia, o nome da pedra é Rei Sabá, eles não chamam Sebastião, chamam ele Sabá. Aí tem a questão da discussão, do São Sebastião católico com o Rei Sebastião. Eu não costumo juntar os dois, né, mas há quem diga que são os mesmos. Mas para mim São Sebastião é o santo católico e o Rei Sebastião é a entidade que desce nos terreiros, que foi o rei de Portugal, eu não costumo dizer que são os mesmos porque pra mim, na minha concepção, não são. JL: Como é que é a história do Rei Sebastião? Como é que ele chegou aqui no Maranhão nessa pedra, como é que ele se encantou aqui? JU: Posso falar a versão de Pirabas, por aqui por São Luís eu ainda não tenho, ainda estou lendo, estudando essa questão do Rei Sebastião na Praia dos Lençóis… Mas lá em São João de Pirabas, a ideia é que após a batalha de Alcácer Quibir, ele fugiu e não se sabe pra onde foi. Os paraenses dizem que ele se perdeu e foi achado já aqui, em São João de Pirabas, mas com uma encantaria que é a encantaria de Sebastião. Então na praia, quando você vai andando, de longe você avista aquela pedra, no ponto mais alto, né? Dá pra entender que é um homem de frente para o mar, admirando a paisagem, sentado, assim nessa posição, admirando a paisagem, mas quando você vai chegando próximo não é um homem, é uma pedra. Então lá existe inúmeros relatos de pescadores que dizem que alcançaram graça de doença, que foram curados, de questão de ir pescar e não conseguir pegar peixe, ia lá e pedia para o Rei Sebastião, caso eles pegassem peixe eles voltavam com o maior peixe que podia dar pró Rei Sebastião e o resto era deles. Então existe ínumeros relatos dentro da história do Rei Sebastião lá, que eles alcançam graças e conseguiam resolver os problemas deles acreditando nessa encantaria dele, do Sebastião. Talvez ele tenha passado por São Luís do Maranhão, tenha feito uma encantaria por aqui e também tenha passado por São João de Pirabas. Então eu acredito que a fé, a religião, a fé no Rei Sebastião é muito mais forte do que dizer se é ou não é de Pirabas ou se é a Praia dos Lençóis. Então acredito que essa não é a discussão. |
«Então lá existe inúmeros relatos de pescadores que dizem que alcançaram graça de doença, que foram curados, de questão de ir pescar e não conseguir pegar peixe, ia lá e pedia para o Rei Sebastião, caso eles pegassem peixe eles voltavam com o maior peixe que podia dar pró Rei Sebastião e o resto era deles.»
JL: Noutro dia, Seu Cravinho em cima de Pai Wender estava dizendo que encantaria é uma espécie de mundo virtual, como nós pecadores diríamos, mas tem uma localização. Nalguns casos as pessoas dizem: em tal lugar tem encantaria do Rei Sebastião ou tem encantado que mora aqui. Então o que é a encantaria exactamente?
JU: Na verdade a encantaria, ela é um local, acredito que não material, a princípio não material, mas um local onde aquele ser que um dia foi humano, ele foi transportado lá, ele não teve a experiência da morte né? ele apenas conseguiu transcender pra esse local, acredito que seja essa a palavra, né? E aí ele vive na sua eternidade, há trezentos, quatrocentos anos. A nossa religião ela é ligada aos elementos da natureza, então nos elementos da natureza locais subentende-se que ali está encantado aquele rei, aquela raínha, aquela princesa, aquele índio, aquele turco. Então a gente acredita que ali naquela encantaria existe a ligação desse ser com a gente. Então, por exemplo, na pedra de Rei Sebastião, eles dizem que é ali que é a encantaria deles, como eles não sabem onde existe, onde eu posso encontrar, eles colocam aquela pedra como algo que é referência da encantaria do Rei Sebastião. JL: Poderiam ser pontos de entrada nesse mundo virtual… JU: Isso. Pra eu falar com meu parente lá em São Paulo porque eu tenho de ir a um computador, aquele computador lá é o objecto, como a pedra, que vai lhe levar ao ser encantado, eu acredito nisso. JL: Há quem diga que os encantados gostam de baixar nas festas porque que há uma alegria que na encantaria não existiria... JU: Falar de encantaria pra mim é complicado, porque eu não tenho essa experiência da encantaria, mas acredito que os encantados, quando eles descem, eles vão se apropriando do nosso mundo, desse mundo aqui, né? E vão tomando conhecimento e aí vão gostando de uma bebida, eles gostam de uma bebida que eles não conheciam, eles fazem coisas que eles não sabiam fazer. Há três anos eu tenho um encantado que, assim, ele não bebia. Seu António de Légua era um encantado animado, quando davam bebida pra ele, ele não aceitava, então ele bebia água mas não sei lhe explicar porquê, com o passar do tempo ele passou a entender, acredito eu, que teria algum fundamento ele tomar aquela bebida e aí ele passou a beber. Então eu acredito que, com o passar do tempo, o encantado na cabeça do filho, ele vai tomando uma postura, ele vai tomando certos conhecimentos, ele vai entendendo esse mundo daqui pra ele se habituar. JL: Tem pessoas que dizem que, a qualquer momento, na vida quotidiana um encantado ou um caboclo pode baixar né? JU: Nós somo instrumentos dos nossos encantados, das entidades. Antes eu tinha essa dificuldade de estar em qualquer lugar e sentir vibração que não precisava ter um local específico, né? E com essa minha formação dentro do Tambor de Mina, o encantado foi se moldando, então agora hoje eu não tenho essa dificuldade, posso estar em qualquer lugar e aí ele me pegar não, até porque eles já foi tudo treinados, os encantados são doutrinados para descer em cima de mim, dentro de uma chamada. Pode ser que ele me pegue noutro lugar, pode, eu não vou dizer que não. A partir de todo esse conhecimento de Tambor de Mina ele não vão me pegar? Não, pode pegar sim, eles usam a nossa matéria para fazer aquilo que eles querem, então não posso dizer que hoje não acontece, isso pode acontecer sim, embora, é claro que hoje eu estou mais doutrinado do que antes. Antes eu não entendia o que foi que aconteceu comigo, hoje eu já entendo. que é uma entidade que vem em mim, que me deixa em transe e é ela que passa a tomar as rédeas da situação, é ela que vai falar, é ela que vai dizer, que vai se comportar dentro da sociedade, não sou mais eu, não é mais o Júnior, já é uma entidade que vai falar, que vai dizer que vai agir. JL: Você lembra depois? JU: Não consigo lembrar, não sei, porque sou novo. Porque pra mim é quatro anos que recebo entidade. Sentia vibrações mas entidade assim com clareza, certeza, com formação, quatro anos que eu recebo essas entidades. Não sei se daqui a dez anos, com conhecimento... JL: Há pessoas que dizem que recebem o encantado mas é um transe controlado, semi-consciente… JU – É assim: entro em transe e apago completamente, tanto que quando eu volto, eu vou voltando aos poucos, fico tentando entender, tentando perceber o que estava acontecendo, pois vou voltando aos poucos. Meu meu transe é completo, não tem essa ligação... JL: Como é que o transe chega? Como é a sensação física? JU – A gente vai perdendo um pouco a força, sinto a minha visão fuscar, então minha visão fica baixa, fica muito baixa, não consigo enxergar, então é quando apaga e o orixá ou encantado ele pega, então não consigo mais voltar. Eu acredito é quando vem mais encantado homem, então o Sete Flechas, quando ele vem, eu perco primeiro os sentidos e só a visão, depois eu apago a visão e não lembro mais de nada. Essa é minha incorporação. Agora o transe, ele é muito específico de cada um, porque eu já vi pessoas falar de transe de uma maneira completamente diferente do que eu sinto quando estou incorporado, eu acredito que difere muito. Quando a gente volta, a gente tem assim uma sensação de alívio, parece assim que tipo eu, quando estou dançando, vai me dando uma tensão, um medo porque não sei o que ele vai fazer, o que é que vai acontecer e de repente eu apago. E aí, quando eu volto, geralmente estou sentado ou em pé dentro do barracão, mas quando volto, parece assim que vai me dando força, vai me dando assim um alívio, parece assim que já passou, cumpri minha missão, missão cumprida. JL: Tem vodum, tem encantado nobre, tem princesa, tem caboclo e isso é hierárquico, primeiro o vodum depois os nobres e Deus está por cima disso tudo? JU: Por cima de tudo! JL: E os santos? JU: Os santos, na minha opinião é uma referência que a gente também agradece e pede, porque os nossos ancestrais tiveram essa ligação, e os escravos, quando eles chegaram, eles foram obrigados a adorar os santos católicos, e essa tradição chegou até a gente, e a gente vive essa tradição de acreditar, de pedir prós santos. Deus tem uma história, ele nasceu, fez filho (no caso Jesus Cristo, né?), a gente acredita nessa história, só não vive a instituição católica, a gente não vive a questão do sacramento directamente como ponto fundamental, a gente tem a nossa doutrina religiosa, a catequese que a igreja católica ensina, a gente não vive obrigatoriamente. Alguns vivem, eu tenho todos os sacramentos até a minha idade, sou baptizado, sou crismado, fiz primeira eucaristia e vivo com isso assim como um momento de fé, de acreditar, de amar, de buscar também. É mais um meio, assim como eu posso buscar em Oxóssi assim como posso pedir pra São Sebastião, é, nos nossos momentos aqui a gente reza ladainha do santo do dia, porque aquele santo ele me traz força, ele me traz energia, ele me traz aquilo que eu peço para ele, então assim como eu posso pedir pra Oxósi na nossa oração, eu posso pedir pra São Sebastião dentro da religiosidade católica, então nossa religião ela é livre, ela entrelaça isso. Temos momentos em que rezamos a missa, como agora na festa do Divino, tem a missa, a própria festa do Divino Espírito Santo é um festejo católico que está dentro da nossa comunidade religiosa. JL: Das doutrinas dos seus encantados, quais são as duas ou três que gosta mais? JU: Tem a Cabocla Mariana [que é assim]: Todos tiram-se na praia, todos eles são praianos, todos tiram-se na praia, e a benção para o Pai, eu nasci e me criei no meio do mar” (cantando). JL: E aqui a casa, as pessoas, o ambiente, há quem diga que o terreiro é uma espécie de segunda família… JU: Eu acredito que é assim: a minha alegria maior de vir pra cá é porque eu me senti realizado, quando o pai jogou pra mim o búzio, pra falar as minhas coisas e tudo mais, ele disse assim: “você procura alguém em Belém que possa te ajudar, que possa fazer as coisas, procura alguém da sua confiança que possa te ajudar”. E eu falei assim: “Mas se fosse dessa confiança eu não tinha vindo para cá”. E aí eu confiei muito no Pai Wender, 100% do trabalho que ele fez ou 200% eu fiquei satisfeito, com relação aos meus irmãos de santo, a convivência ela é boa, são seis irmãos, portanto são dotados de positivos e negativos, assim como eu também e se você me disser que existe um terreiro onde é só alegria, só felicidade. eu vou dizer que você está mentindo porque todo o terreiro tem os seus pontos positivos e os seus pontos negativos, então é assim o que fortalece a gente é calma, a experiência, é a alegria de dançar o Tambor, é a alegria do encantado, é o Axé, essa energia. aqui no Axé a gente tem essa energia, então a gente brinca, a gente acha graça, a gente conversa, a gente dialoga, então a gente vivencia. O ser humano é isso, não existe que é totalmente, que é 100% perfeito e também não existe aquele ser humano que é 100% defeituoso, que tem todo o defeito, não, nossa casa ela é voltada pra pontos positivos e pontos negativos. Eu graças a Deus, graças aos meus Orixás, graças a meu pai de santo eu acredito, tenho a plena convicção e 100% certeza e acredito que estou na casa certa. JL: A casa tem uma coisa que muitos terreiros não têm, tem muita mistura social, com pessoas assim mais populares e pessoas que estudam… JU: É uma comunidade jovem, que eu costumo dizer assim, é uma comunidade heterogênea, então tem grande, tem pequeno, tem alto, tem baixo, tem gordo, tem magro, tem o que estudou e tem o que não estudou, tem o que trabalha, tem o que não trabalha, tem heterossexual, tem homossexual, é uma mesclagem, é uma junção e a gente, nessa diversidade, consegue ser feliz e consegue atingir aqui o nosso objectivo que é a busca da energia do Axé, a força, entendeu? Então, dessa diversidade, essa diversidade faz com que a gente consiga caminhar, então a gente briga, a gente discute, a gente conversa, né? A gente tem ideias diferentes, a gente tem ideias parecidas e, aqui eu estou brigando com você, amanhã já estou seu amigo, já estou super-amigo e então a gente caminha de acordo com aquilo que a gente conhece, a gente vive, que a gente sabe. |